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A arte de compartilhar
Idalina Krause
Porto Alegre


Filosofia, educação, saúde, arte de compartilhar, filosofia clínica. Fiquei pensando, remoendo, idéias e sentimentos.

Pensei no lema do bom terapeuta - “amor e trabalho” - e tudo o que foi construído nessa trajetória. O amor puro de Schopenhauer, onde a compaixão é o conhecimento da dor alheia que é também a dor do mundo. E o trabalho onde não haja a traição da espiritualidade alegre e contemplativa que é o próprio homem, que nos traga “a boa consciência”, como bem nos lembra Nietzsche.

Uma das primeiras perguntas que faço nas minhas aulas é: “Vocês gostam de gente?”
Sim, porque trabalhar com Filosofia Clínica é ficar diante da humanidade em pessoa, diante de um ser humano, um alguém com todas as suas singularidades.

A segunda pergunta: Vocês acham que ser terapeuta, ser um filósofo clínico é possível para toda e qualquer pessoa? Acho que não.

O que é preciso para ser um bom terapeuta, um filósofo clínico, que vai usar seus conhecimentos filosóficos, seus saberes como educador, compartilhando artes, na busca de uma melhor qualidade de vida de seus partilhantes?

Amor por gentes, pelo seu trabalho, arte, criação e considero fundamental um bom traço de caráter. E isso não se consegue apenas durante a formação, porque é preciso que esteja lá essencialmente com cada um que busca ser terapeuta desde o começo. É preciso haver uma formação contínua, uma busca que não se esgota em um curso ou uma experiência pedagógica. É preciso um fazer e um refletir sobre esse fazer constantemente.

Para além disso, é desejável um conjunto de traços particulares, de bom efeito moral, traços éticos que vão nortear suas ações e o seu trabalho. Sem essa base, essa dedicação, sem essa sustentação, os alicerces acabam por ruir como um castelo de cartas.

Basta fazer dois anos de formação, mas pré-estágio e estágio e já se está pronto para ser um bom terapeuta? Não.

A formação é uma passagem, é um aperfeiçoamento daquilo que está latente num terapeuta. Durante essa trajetória, esse devir, agregamos mais instrumentos, mais qualificação para lidar com o humano.

Somos pesquisadores de humanidades, alunos, terapeutas, filósofos, sempre em formação (a-luno, significa sem luz). Procuramos uma luzinha: “Melhor aceitar a explicação mais simples, mesmo que não seja simples, mesmo que não explique muita coisa. Não precisa luz forte, uma luzinha basta para a gente viver da estranhidão, basta que seja uma luzinha fiel”. (Samuel Beckett)

Acredito que cada ser humano, tem uma luz própria. Dependerá muito de nossas ações, nossas práticas, sabermos buscá-la.

Uma das proposições mais belas da Filosofia Clínica é a construção compartilhada. Ela tem uma força, uma intensidade poderosa e é com esse propósito que entramos na “festa” da interseção.

Estabelecer interseção é algo fácil? Nem sempre. Mas, na minha concepção, há alguns posicionamentos básicos que podem agir como facilitadores, para essa dança, essa interseção que passa a se estabelecer. Além do que já salientei anteriormente, não podemos esquecer que estamos diante de uma estrutura plástica, dois corpos em movimentos que se dão a conhecer.

Escuta e ouvir: Escutar é estar atento para ouvir. Alguns aqui podem estar me escutando, sons, palavras, ruídos. Mas ouvir é isso, além de uma viagem que me proponho fazer para ir ao mundo do outro. Fui escolhida para isso, esse sujeito propõe um descortinamento, quer trocar, mostrar seu universo mais íntimo. E toda a minha atenção, ligação, respeito ao que começa me chegar estão dispostos nessa direção.

Perceberei dores, odores, alegrias, horrores, palavras, ações entrecortados de silêncios, suspiros de alma, paralisias e transbordamentos, complexidades, nuances, cores, simplicidades, nessa interseção hora estabelecida.

Escutar e ouvir é um exercício fascinante, primeiros passos para um tango, uma valsa, um rap, um funk, um clássico, uma novidade, só ouvindo verdadeiramente, escutando saberemos.

Isso basta?

É preciso algo mais, não atropelar, não induzir, não agendar, não julgar. Devo ser presença, presença que acolhe naturalmente, sem invasão. Mais tranqüilidade, serenidade, um olhar que diga “sim”. Um gesto de “estou te acompanhando”. Teu universo me interessa, estou indo contigo, te saco, quero saber de ti. Me conta tua história, quero visitar teus endereços existenciais. O “como” se faz é a tônica, “o amor busca para que o entendimento encontre”. (Ortega y Gasset)

Nessa vivência que se estabelece, somos companheiros, um filósofo outro partilhante, numa duração de tempo maior ou menor que varia de caso a caso.
Acolha o que a pessoa traz. A boa clínica demanda tempo, não é um comprimido efervescente, é um trabalho de delicadeza e paciência. É acompanhar desdobramentos.

A clínica vai além da técnica, dos saberes e dos conceitos filosóficos. Não temos uma fórmula pronta, temos instrumentos para acompanhar um processo em constante devir. Hora mais lento, hora rápido, raso, largo, profundo, doloroso, alegre, manso ou feroz, que constrói ou desconstrói. Às vezes, se deixa ver com maior nitidez, às vezes ainda se esconde por não estar pronto para se mostrar. Silencia e grita, acalma e agita. Ganha força, refaz, desfaz.

Há surpresas que não estão contempladas, apesar de todo o planejamento clínico obrigatório. Aí entra o poder criativo do filósofo clínico, quando surge o imprevisível, nuances do inesperado.

Um exemplo que costumo citar é de um caso no qual um partilhante não queria contar a sua história. Várias consultas que giravam em torno do assunto imediato e último.
O que fazer? Sem conhecer as circunstâncias mais amplas dessa existência, seu tempo subjetivo, suas relações, os endereços, lugares, como detalhar os choques dessa estrutura de pensamento? Como saber suas formas de ação ou submodos?

Aí veio a luz. Dentro do relato que novamente girava no problema que estava enfrentado no momento. Eu perguntei: E antes disso? Foi a alternativa que surgiu, consegui colher o histórico por retroação. E a partir daí a clínica fluiu com naturalidade.

A terapia é um desafio, é trabalhoso, leva tempo. A clínica não é uma ciência exata, as variáveis vão ao infinito. E nem uma pessoa será igual a outra. Cada partilhante que chega é único.

Uma das abordagens que faço no meu livro e que tenho repetido em encontros, aulas e workshops é a ênfase na formação. Para ser um bom terapeuta, além de estudar, se dedicar, ler, aprofundar os conhecimentos é preciso por em prática esses saberes.

Para mim, foi fundamental o trabalho voluntário, que comecei já antes da Filosofia Clínica na época da faculdade. No antigo Projeto Rondon. E após os estágios fui novamente fazer voluntariado com deficientes visuais.

Sair é preciso, ir para o mundo, colocar em práticas as idéias, os conceitos. O atendimento no domicílio é outra experiência que também recomendo. Essas práticas trarão com certeza aprimoramento, um novo empirismo entre sujeitos, riquezas existenciais que vão auxiliar nos devires seguintes e isso fará diferença.

Amadurecemos muito com isso, quebramos muito pré-juízos, vamos encarar outras tantas realidades, agregamos com isso força, novas perspectivas diante do mundo. Isso nos torna mais criativos, temos novos materiais para estudo e pesquisa.

Os estudos são constantes. Bons livros, bons filmes, seminários, grupos de estudos, encontros. Tudo o que possa servir para o aperfeiçoamento, para excelência de aulas, atendimentos, para nos enriquecer como seres humanos. Tornará qualquer tipo de relação mais qualificada seja na vida, na clínica em sala de aula. E isso irá transparecer pela intensidade das novas interseções.

Penso, acredito, que nesse tempo todo da Filosofia Clínica, onde lidamos diretamente com os saberes filosóficos, com educação e com a saúde crescemos muito. Caminhamos, entre erros e acertos.

E cresceu mais, quem lutou, buscou aperfeiçoamento que não se esgota nunca, pois a vida é um perpétuo móbile. Que criou, cultivou, distribuiu e auxiliou. Sendo uma luzinha fiel nessa trajetória. Quantas pessoas passaram por nós? Quantos ainda virão?

Se fizermos bem o nosso trabalho, com ética e responsabilidade, esse será o nosso reconhecimento, a nossa alegria e nossa marca no tempo.

A Filosofia Clínica é a arte de compartilhar.


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