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Dialéticas da escuta

Ana Cristina da Conceição
Filósofa Clínica
Porto Alegre/RS



Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens. 
Fernando Pessoa 



A sociedade pós-moderna pode ser caracterizada como a sociedade do silêncio. Não o silêncio como ausência de ruídos, mas àquele indicativo de lacunas existenciais. Cada pessoa calada em si mesma. Esse estado de espírito pode ter causas as mais variadas e surpreendentes. É estranho dizer algo assim para uma sociedade – brasileira – onde as distâncias entre seus integrantes, a partir do surgimento das novas tecnologias e o aperfeiçoamento dos sistemas de comunicação foram diminuídas.
Por que apesar de conectados uns aos outros, a presença desse silêncio ainda oprime, sufoca e contribui para desestruturar muita gente? A falta de alguém para compartilhar talvez ajude a explicar esse fenômeno. Temos em nossas vidas dezenas de pessoas aparentemente tão próximas, falando e com indicativos de escuta, no entanto, são cada vez mais raros os momentos em que nosso dizer encontra alguma repercussão.
Quem sabe por isso, a busca por terapia, onde a pessoa possa compartilhar angústias, ansiedades e medos, descubra territórios tão essenciais ao ser humano.
Antes do aprendizado da palavra falada somos mudos. Só depois, na convivência com os outros, através de ruídos e sons é que algum vocabulário começa a se estruturar. Com o tempo, o querer dizer vai compondo raciocínios, organizando e criando significados dentro de cada um e o contar vai elaborando seus discursos. Assim, para falar é importante ouvir, ler e compartilhar com atenção e interesse os fatos da vida. Um dos caminhos para o terapeuta obter algum êxito, é aprender com as múltiplas possibilidades oferecidas pela reciprocidade.
Qualificar a escuta é um dos principais procedimentos a quem se especializa em alguma forma de terapia. A maioria dos profissionais utiliza um conjunto de ferramentas para executar seu trabalho. Um artesão, por exemplo, para confeccionar uma peça, tem o cuidado de escolher as técnicas adequadas para realizar seu trabalho. Ele tem ciência de que cada peça é única. Em terapia isso não é muito diferente. Cada sujeito chega como uma peça singular, reivindicando algum sentido para seu mundo. A escuta, nesse sentido, se faz ponto de partida. 
Cada abordagem clínica tem seu jeito de realizar interseção com o mundo do outro. Em Filosofia Clínica a singularidade das pessoas chega até nós de um jeito especial. O partilhante é, para o terapeuta, um aprendizado em processo de re-começo. Sua expressividade pode acontecer através do dado verbal, nos gestos, com a escrita ou pelo silêncio. O Filósofo Clínico exercita, nos atendimentos, uma escuta epistemológica e fenomenológica: o agendamento mínimo. 
Realizar uma escuta clínica de qualidade é uma conquista a cada sessão. O Filósofo Clínico se torna cúmplice dos discursos produzidos pelo outro, quando visita seu mundo através da subjetividade. A qualificação da interseção pode descrever estruturas de maior intimidade. 
Assim, a escuta clínica (redução fenomenológica possível) pode ser para o Filósofo Clínico, um procedimento de maior alcance na malha intelectiva da pessoa. Estamos falando aqui de uma relação onde o sujeito esteja se utilizando do dado verbal para se expressar. 
Desse ponto de vista, a mudança, esperada, desejada, assumida, torna-se paradoxalmente produtora de identidade. Aderir a ela, não é nesse caso “morrer um pouco” deixando partir, com o que foi uma parte de si que não será mais: é talvez, exatamente ao contrário, um dos meios mais elementares de afirmar sua própria existência, tanto ao olhar de si mesmo como diante de outrem. É mudar se não “a vida”, em todo caso, o sentido de sua própria vida. (Eric Landowski, Presenças do outro, pág. 93).


Ainda assim pré-juízos e preconceitos estão por todo lado. A busca por aprender a escutar propõe evitar distorções nos conteúdo de fala. Enquanto o partilhante está relatando suas vivências é importante um distanciamento aproximado. Aqui não se trata de julgar ou efetuar alguma forma de interpretação. O papel do terapeuta é cuidar, dar atenção e compartilhar. Encontrar algum ponto de equilíbrio ou conforto existencial ao sujeito. 
Muitos virão ao Filósofo Clínico buscando algum espaço de partilha. Também é importante não efetuar comparações, pois cada caso é único. Quando se trata de escutar, cada escuta é escuta nova. A historia de cada um por mais semelhanças que possua, é diferente.
Aqui noções de certo ou errado não cabem ao exercício clínico do Filósofo. Sua estrutura de pensamento, impregnada de valores, sentimentos e verdades é singular. Aprender com o partilhante, através do fenômeno narrativo, se constitui um grande aliado para aproximação com o desconhecido.
A compaixão pelo partilhante pode existir em clínica, mas não deve interferir nos propósitos da terapia. O silêncio imposto ao sujeito pode levá-lo ao caminho da somatização, significando que muitos chegarão ao consultório com algum tipo de expressividade a dificultar e torcer as percepções iniciais dessa relação de ajuda. O significado da escuta clínica também é contribuir com as descobertas, organização, re-significação ou elaboração dos próprios enredos. 
As dialéticas da escuta compartilhada podem favorecer as falas, até então inexatas ou confusas, em seu inédito aparecimento. As palavras podem oferecer um sentido novo para uma vida até então silenciada. 


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