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“MATANDO A SAUDADE”

Ildo Meyer
Médico e Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS


Gosto muito de pensar e escrever sobre as múltiplas maneiras como o ser humano interage automaticamente com o cotidiano. Pelo menos uma vez por semana, alguém faz uma sugestão de assunto para que eu desenvolva. Alguns chegam na hora certa e me inspiram, outros são engavetados. Observem uma pequena amostra da diversidade.

O milionário que recebe conselhos de amigos alertando para as mulheres que se aproximam em busca de dinheiro. Sua resposta categórica é que elas estão certas na escolha, pois recursos não lhe faltam e ele dá com prazer ou em troca de.

Construções modernas de quartos minúsculos e paredes ultra finas, onde o vizinho do 507 escuta e consegue saber quantas vezes o morador do 607 foi ao banheiro durante a noite, qual o tipo de sapato que usava, quantas pessoas dormiram na cama, se fizeram sexo e até mesmo se foi bom ou ruim.

Homens que se referem a seu órgão sexual na terceira pessoa do singular, como se fosse outra pessoa ou entidade. “Ele funciona quando quer, independente de minha vontade”, “Ele falou mais alto”. Como assim?

Por mais que eu me esforce, não adianta; se não estou vivenciando, não consigo desenvolver o pensamento. Chega um momento em que o raciocínio tranca. Preciso estar sentindo para que as idéias façam sentido e possam ser escritas. E o que sinto agora é algo que as pessoas costumam chamar de saudade. Ainda não consegui definir se é uma sensação agradável ou não, mas vamos lá.

Lembro com alegria da minha infância fazendo molecagens na rua e sei que não posso regredir no tempo e voltar aos dez anos de idade. Cresci, virei adulto e minha cabeça já é outra. Ficaram as lembranças. Ainda brinco de esconde-esconde debaixo do edredon, faço caretas no espelho e na hora de tomar injeção, escrevo bobagens no blog, mas aquela inocência gostosa ficou para trás. Não sinto vontade de voltar ao passado e acho que isto não se chama saudade. São lembranças...

Lembro de meus avós que devem estar no céu, mas não consigo imaginar um diálogo se nos encontrássemos hoje. Eles com a mentalidade que tinham e eu com esta cabeça modelo 2010. Tenho ótimas lembranças deles me carregando no colo e oferecendo balas e chocolates, mas não apostaria num reencontro maior do que longos abraços e curtas conversas. As caras feias de discordância ideológica dominariam o cenário. Acho então que isto também não se chama saudade, e sim lembranças, recordações, nostalgia...

Saudade é quando você quer que a pessoa ou a situação retorne, mas não sabe se vai acontecer, não está mais no seu controle. É diferente da infância que já passou ou de alguém que morreu, pois estes deixam lembranças, mas não voltam. Saudade a gente sente de algo que está ai vivo, solto e nunca deixou de existir, e assume o tom fatalista quando nos joga num vazio onde percebemos que o objeto do desejo talvez nunca mais seja possível. Saudade é a desconfortável esperança de um reencontro sabe-se lá quando.

Uma ausência que fica ali, presente em cada pensamento, em cada lágrima, em cada silêncio, em cada música. Sentimos saudade do filho que foi morar em outra cidade, da mulher que foi embora, do emprego que deixamos para trás, do amigo que não faz contato. Acho que saudade sempre tem um pouco de auto-acusação e arrependimento. Poderia ter sido diferente? O que eu fiz de errado? Ainda dá pra reverter?

Muitas vezes confundimos saudade com nostalgia...

Começo a acreditar que o caminho para que a saudade pare de doer e possa ser uma sensação agradável em nossas vidas é assumir que a falta que sentimos é um sinal de amor. O amado pode não estar mais ali, mas o amor permanece. Saudade é amor que aconteceu um dia e que ainda permanece incrustado dentro de nó, marcando nosso consciente e subconsciente. Aceitar as mudanças e os finais, não significa esquecer, passar uma borracha. Cada momento é único e deixa marcas. Algumas são apagadas com o tempo, outras ofuscadas por lembranças mais recentes e as que realmente valeram a pena, “vão deixar saudade” e com vontade de repetir a dose.

Algumas sugestões de assuntos, embora super interessantes, ainda estão engavetadas esperando que eu as retome um dia. Assim funcionam os amores que marcaram nossas vidas e não estão mais ao nosso lado: desejamos encontrá-los, ficar com eles e “matar” as saudades. Enquanto isto não acontece, remexo as gavetas e a alma. O problema é que muitas vezes não sabemos como refazer as relações interrompidas, e elas ficam, quase como objetos, escondidas em gavetas sem chave. Melhor não dar chances pra saudade e se entregar, demonstrar o afeto, “comer a presença” das pessoas amadas no momento certo. Esta é a chave que abre corações, e ao invés de “matar ou morrer de saudades”, dá vida ao amor.

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