Pular para o conteúdo principal
Sonhos e Foucault

Cássia Regina da Silva Luz
Goiânia/GO



Foucault se utiliza de um texto de Artemidoro "A Chave dos sonhos", para averiguação de articulações e métodos utilizados na maneira de conhecer dos gregos. "A análise dos sonhos fazia parte das técnicas de existência. Já que as imagens do sono eram consideradas, pelo menos algumas dessas imagens, como signos de realidade ou mensagens do futuro, decifrá-las tinha um grande valor: uma vida racional não podia poupar-se desta tarefa." [1] Com efeito, o ato de sonhar estava relacionado a um encadeamento político, o homem virtuoso poderia ser reconhecido na constituição própria de seu sonho, ou seja, o indivíduo que jaz conquistado o equilíbrio não havia mais de ter sonhos desequilibrados como falta ou excesso, desejo ou medo. O que queremos acentuar aqui é que o cidadão grego cultivava como hábito essencial para existência analisar os sonhos, por valores interiores, colocando-os em revista frente às suas próprias experiências. Peira (experiência), é antes de tudo seu próprio testemunho.

O texto de Artemidoro revela uma diferença no modo de conhecer, mas não só, também uma diferenciação na maneira de promover este conhecimento correlacionando o ser político moral ao cuidado de si. Uma ética do sujeito que se distancia um pouco do cuidado de si dos estóicos e epicuristas, a qual Foucault trabalha no seu texto como sendo a época de Ouro. Nos séculos I, II, a.C. as práticas do auto-exame se estendem numa atividade de reflexão mais passiva. O cuidar de si exige não só um reconhecimento, mas um saber reconhecer a patogenia no interior de si mesmo, utilizar se de regras e princípios que o auxiliem na prática do auto exame, como atividade essencial para a rígida conduta no bom caminho. O racional haveria de se adequar ao saber. E como por ironia o cuidar de si há de ser voluntário, ou seja, o sujeito de vontade se torna sustentação de um aprendizado exterior, e é com essa desenvoltura que se relaciona enquanto sujeito de conhecimento. Numa palavra, na grade de analises válidas para o corpo e a alma, praticar a privação do que é considerado supérfluo é ato de necessidade, era essencial a abstinência em tudo o considerado excesso. Esse processo revela o trabalho do pensamento sobre ele mesmo, no intuito de examina-lo, controla-lo, e encaminha-lo no bom caminho. Tal postura está relacionada com regras de memorização.

Aqui podemos detectar uma necessidade do desvinculamento de si, numa atitude virtuosa, memorizar certas regras exteriores, e que vão compondo o cuidar de si. Apesar de envolver o mesmo termo, traz consigo outras características que aos poucos se justapõem, dando uma dimensão mais deslocada para o ser ético e político.

A prática da rememorização da pedagogia grega tinha por objeto princípios filosóficos fundamentais, inclusive um posterior desprendimento do educando. Na época de ouro, esta prática está relacionada à memorização de regras de conduta que devem permanecer sempre fixas na lembrança, permitindo ao indivíduo a sabedoria de escolher meios convenientes para manter o equilíbrio. Enquanto que a respectiva aplicação já na era cristã da prática da rememorização, é no sentido de memorizar não só suas faltas, mas as leis que julgam-nas como pecado. E esta prática está orientada para constituição do eu sem qualquer continuidade com o sujeito de conhecimento ou de vontade. Mas antes, este jogo de verdade está definido pela sua correspondência com a realidade por uma tendência obrigacional, que por uma força estranha exterior aplica sobre si mesmo um “tu deves”. A rememorização surge como adequação a realidade das leis impostas. E não mais com o objetivo de abrir no indivíduo um espaço onde a verdade pudesse surgir e atuar como uma força de vontade, através da presença da memória a da eficiência do discurso.

O conhecimento ou o cuidar de si na era cristã está voltado para o exterior do ser, ao invés da alma voltar sobre si mesma para encontrar sua natureza ( como em Platão), a ordem é prender o que se aprende com o mestre nas duas mãos, até que faça parte de nós, e possamos reconhecê-las como nossas verdades. Tais princípios se articulam muito relacionados ao modo de conhecer dos pagãos; diz Sêneca e Plutarco: “devemos voltar ao exterior em busca do discurso até fazer dele o nosso”. O que convém assinalar aqui, é a relação de dependência do discípulo em relação à seu mestre por toda vida.

Para Foucault, a paradoxalidade nas práticas do auto-exame e da confissão que constituíram o cuidado de si do indivíduo grego para o da era cristã é fundamental para nos determos nos pontos de transferência para a constituição do eu moderno.

Diz Foucault: “Ora através dessas modificações de temas preexistentes pode-se reconhecer o desenvolvimento de uma arte da existência dominada pelo cuidado de si. Essa arte de si mesmo já não insiste tanto sobre os excessos sobre os quais é possível entregar-se, e que conviria dominar para exercer sua dominação sobre os outros, ela sublinha cada vez mais a fragilidade do indivíduo em relação aos diversos males que a atividade sexual pode suscitar. Ela também sublinha a necessidade de submeter esta última a uma forma universal pelo qual está ligado e que para todos os humanos, se fundamenta ao mesmo tempo em natureza e em razão. Ela acentua igualmente a importância em desenvolver todas as práticas e todos os exercícios pelos quais pode-se manter o controle sobre si, e chegar no final das contas a um puro gozo de si. Não é a acentuação das formas de interdição que está na origem dessas modificações na moral sexual, é o desenvolvimento de uma arte da existência que gravita em torno da questão de si mesmo, de sua própria dependência e independência, de sua forma universal e do vinculo que se pode e deve estabelecer com outros, dos procedimento pelos quais se exerce seu controle sobre si próprio e da maneira pela qual se pode estabelecer a plena soberania sobre si.”[2]

BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2. O Uso dos Prazeres. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal,1984. O texto “Modificações”.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3. O Cuidado de Si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. O texto “A Chave dos Sonhos”.

[1] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3. O Cuidado de Si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Página 14.

[2] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3. O Cuidado de Si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Página 234.

Comentários

Visitas