Pular para o conteúdo principal
AS PEDRAS DE GOIÁS VELHO

Vânia Dantas
Filósofa Clínica
Uberlândia - MG


Santuário, andor, altar, escada na cidade histórica. Retratos de um tempo que está ficando passado mas que a gente talvez tenha que revisitar.
A cada dia a mensagem no programa matinal na TV elogia a retomada das forças e dos valores; ao que parece, enterrados em várias pessoas. E, de repente, viram flores. Esses são relances de quando o ouvinte se sente bem e tem ousadia de planejar agir, enquanto aos primeiros passos já é preciso parar e repensar a viabilidade do projeto, pois há desequilíbrio devido à compressão medular.
A degeneração precoce leva a pensar em como se resgatar do chão e como viver uma terceira em tenra idade. A ambigüidade de uma vida assim confunde: a idade cronológica, a biológica e a que a estética revela. E também porque não há deficiência, mas doença e dor; parece não haver soluções garantidas, mas paliativos com efeitos colaterais. E o que pedem é ‘descanso’, quando se está cansado dos repousos forçados.
São questões do corpo que atormentam tanto a parecer que ele ocupa todo o tempo, o abstrato se foi, ficou na estrada... por algum tempo a vida acaba sendo tão dura quanto as pedras de Goiás Velho.
Por que o andor deve ser pesado.
Por que os nichos têm pedras arredondadas, para harmonizar a colocação dos seres minerais.
Por que para se chegar ao santo se beija as pedras.
Como os nichos que trazem imagens escondidas por entre as pedras, aí está a essência. Almas se escondem em corpos perfeitos e sentimentos horríveis...
Por instantes inspirados é possível imaginar um apanhador de sonhos, solto no campo de flores de ervilha; emocionalmente se volta no tempo e recolhe cada sonho para continuar lutando/vivendo; e se debruça também sobre a realização deles, em detalhes; o reforço das crenças, a confiança na vida. A importância desse momento talvez só possa ser entendida por quem já perdeu algum dia as esperanças, por completo. Como se diz, viver assim é "morrer em vida". É a mais pura realidade.
Enquanto há vida, há que se lutar, mesmo que os movimentos se despeçam, os músculos não obedeçam e o esqueleto pese; mesmo que o corpo se torne independente, suas ações se tornem involuntárias e se queira andar pra esquerda, mas vá para a direita.
Dia desses, havia uma cadeira de rodas na vizinhança, mas não era na garagem, vazia; esse aparelho era como um auxiliar, equipamento para continuar a exercer atividades, assim como a bengala, a muleta, o andador. Ou como o carro. Na recusa daqueles, pode-se usar de “bengalas humanas” – e há quem aparentemente não precise, mas usa.
O andar cambaleante, um efeito da doença degenerativa da coluna, traumatiza bastante, assusta, algumas vezes lembra os impedimentos e as limitações que a vida impõe de forma prematura. Assim, a pessoa pode ver-se jovem e ao mesmo tempo velha; um sorriso deslumbrante e instantes depois, ou mesmo concomitantemente, as lágrimas de dor caindo. Parece que o equilíbrio se torna latente, alternado, tanto nas emoções quanto no corpo.
Existe a noção de que enquanto há vida é preciso continuar; em muitos momentos é preciso se forçar em algumas atividades para que lá na frente se chegue ao alívio... talvez o mesmo alívio que se sente algumas vezes na vida, como quando se livra da rinite e consegue respirar normalmente o ar, um alimento que já não dói nas mucosas e consegue entrar em grande volume, absorvido com vontade igual a quando se tem muita sede. Ou quando se estanca uma hemorragia, de repente, e não se vê mais o corpo indo embora aos poucos.
Em alguns momentos é possível um reviver, como se voltasse ao normal, o metabolismo normalizado, a vontade de viver, o brilho, a sensualidade. A dor continua, tal vizinha má que a gente deixa de lado. Até quando? Um resultado que não se esperava mais – um dia sem dor - é um presente.
As doenças crônicas exigem um amadurecimento muito grande, por um lado. Subindo os degraus, às vezes há recaídas. Vários desafios vencidos – talvez, se anunciados antes, provavelmente não teriam sido aceitos. Assim, as pedras das cidades históricas e às margens das cachoeiras marcam muito; as inclinações, os formatos, os tamanhos, como se todas fossem obstáculos a gerarem sustos, medos, incredulidade.
E, de alguma forma, talvez sejam as pedras as próprias metáforas da vida; de que se tem uma história muito única de limitações ao mesmo tempo em que de talentos. E para suportar viver com isso, somente saindo de si, somente buscando objetivos além do normal, as atividades não regulares, adaptações e saber conviver com contratempos constantemente, com cada desequilíbrio (de insegurança), cada pontada (como se de faca), cada irradiação aguda (como um corte).
Durante as manutenções, mais conhecidos por tratamentos, aos poucos se consegue refletir sobre algumas coisas muito importantes para se achar meios de enfrentar o período de sofrimento físico; existem os baques e parece ser preciso força demais pra enfrentar, mas quando se decide a isso, esta é a motivação. É como uma provação em que se tivesse que firmar as raízes em termos de fé, de persistência e de ousadia, até mesmo para retomar os projetos de vida.
Mas, enfim, há pessoas que precisam ser tão forte como as pedras.
Daí, um último pensamento no qual se pode encontrar uma explicação para que a vida tenha sentido. Ele pode ter um valor enorme, quando alcançada a sua verdadeira dimensão. É o lema dos maratonistas de Uberlândia, associado à imagem de Ayrton Senna: "pain is temporary; proud is forever".
As pedras a se enfrentar...
************

Comentários

Visitas