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DOS ÂMBITOS DO ESQUISITO[1]

Márcio de Faria e Vânia Dantas
Filósofos Clínicos
Governador Valadares e Uberlândia/MG




Estranho, malvisto. Ou não usual, excêntrico. O exquisito[2]: magnífico, delicioso. Uma palavra que pode arrastar toda a estrutura de tópicos e trazer as vivências relacionadas com o termo presente em várias fases da vida; e talvez de várias vidas. Palavra que também faz o indivíduo sentir como se não fizesse parte de um todo social, um contexto, uma história; que marginaliza, diferencia, diminui.

Nesse sentido, cada palavra do outro é uma pá de terra jogada para trás; desenterra memórias de vivências antigas, esquecidas, não verbalizadas e, nesse sentido, inconscientes[3]. Por isso, essa palavra acaba sendo direcionada para aquela pessoa que se faz única, com coragem de viver a sua unicidade/personalidade ou intus, sua condição humana que se configura como pura intimidade. Lidar com o que temos de personalíssimo num mundo objetivo é nosso grande desafio hoje em dia: como se mostrar e ser reconhecido como pessoa única num mundo onde os comportamentos são fabricados em série como esse computador que estou manipulando agora?

Nesses âmbitos de convivência, os relatos pessoais podem nos maravilhar com imagens de lugares, coisas e situações. Relatos que nos causam deleite, encantamento, fazem rememorar situações semelhantes, idéias de lugares parecidos, formas puras de pessoalidade e sentimento de unicidade e integração, como na descrição seguinte:

A visão do jardim através de janelas novas, de dentro do porão rebaixado na terra, fazendo companhia às raízes. Na antiga senzala, se olha para cima através de outras janelas para observar pés e rodas na calçada das pessoas e na calçada dos veículos. O carro de boi está exposto no jardim; ferro, madeira e palha trançada; ressoa de longe na memória o choro do carro, parte do patrimônio imaterial de uma comunidade; antes instrumento de labor, depois peça de desfile, transforma-se em objeto de rememoração do passado que já está aí.



Por um lado, há a peleja de voltar-se para si, através da reflexão sobre a vivência e da rememoração. Mas a vida social nos chama sempre para estarmos fora de nós: é a elevação ao ser social, à comunidade, ao imediato. A universalidade das ações se desdobra e particulariza nas formas de um comportamento que corresponda a um agir econômico, cultural, político e social. Essas particularidades das ações são outras tantas mediações através das quais a vida prática de cada um se socializa na forma de hábitos. Do ponto de vista da estrutura social, o indivíduo não se apresenta como um átomo ou uma molécula que se move livremente, arbitrariamente. Ao contrário, uma cadeia complexa de mediações ordena os movimentos do individuo num todo social. O que integra a pessoa ao agir são os hábitos adquiridos; na sociedade, são os costumes e normas de cada uma das esferas citadas acima que regem a forma como a pessoa vai realizar suas ações. Através dessas mediações o indivíduo se integra à sociedade.

Essa integração pode ser entendida como a imersão nas teias das relações, se tomarmos Foucault, segundo o qual a ciência se apropria das práticas do senso comum e realiza a sistematização e o controle do conhecimento. Foucault pensa a importância dos afetos na constituição das práticas, uma vez que para ele, assim como para Marx, as relações criam regras. O discurso ordena a prática e a prática constitui o objeto de estudo. Portanto, para compreender o objeto é preciso pensar a prática que o engendrou.

Assim, pode-se dizer que a pessoa social é aquela que tem em si a particularidade, que é natural de cada um, e a universalidade, que compete a todos. O ser social é aquele sujeito intersubjetivo, que se comunica com todos e mantém sua individualidade. Porém, quando as formas de pessoalidade são suprimidas não há subjetividade, não há ética. É neste sentido que observamos a utilização pejorativa do termo “esquisito”.

Tem-se visto que a situação atual está marcada por vergonhas morais e políticas que afetam a nossa existência, a saber: a fome, a miséria, a tortura, a violação da dignidade humana, o crescente desemprego, a ameaça de destruição da natureza pelo desequilíbrio ecológico. Na era do sujeito sem referências morais, faz-se necessária a consciência de cidadão do mundo que possa responsabilizar-se pelos efeitos do poder de maneira intersubjetiva, através de consenso, e não sozinho. O desafio é fazer com que essa reflexão se torne ampla. Temos aí que saber combinar a propriedade com o convívio em comum, por isso o encontro com o outro é importante, com o devido cuidado para não perder a identidade, mas estabelecer uma terceira, o nós, como um papel do sujeito nas instituições, o elevar-se, do individual ao universal; o compromisso do eu com os outros “eus” numa comunhão de entidades.

Vamos ao resplandecente. O fazer individual comprometido com o todo, o pensamento do significado de si em vínculo estreito com o ser do outro. O diluir-se, realizar-se nesse mundo que aparece. O si que vai para/a/com o outro. O ser feliz atrelado à felicidade do entorno – o equilíbrio global.

Coroando essa viagem sobre o ser esquisito, vem a pregação do padre Fábio de Mello sobre os “santos esquisitos” do nosso tempo[4], com diferentes aparências e modos de ser; um bálsamo para todos, padrões e minorias, que toca na teoria política do “respeito à diferença”, enquanto se compartimentalizam as manifestações desta ou daquela categoria de pessoas no meio acadêmico.

O debate sobre diferenças, identidades, políticas e representação é trazido por Pierucci, que divulga o direito de sermos pessoal e coletivamente diferentes uns dos outros. Mas, ao mesmo tempo em que um grupo afirma sua diferença e busca um reconhecimento social e/ou político, aparecem dentro dele outras diferenças que anteriormente eram invisíveis e ilegítimas. Assim, a diferença é socialmente produtiva, pois o mecanismo de luta pelos direitos à diferença gesta em si o aparecimento de uma multiplicidades dentro do grupo inicial.

Olhando para tantos eventos consagrados à discussão das particularidades desses grupos, para não cair na “igualdade que exclua ou na diferença que padronize”, chegamos a cogitar que talvez em breve venham a ser criados fóruns de integração multiétnico-comportamental para possibilitar a volta da convivência, ou seja, a interação entre os diferentes, por ora, esquisitos[5]...




BIBLIOGRAFIA



FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1972 (Original: L’Archéologie du Savoir. Paris, Gallimard, 1969)



___________________. História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. 232 p.



________________. A ordem do discurso. Aula inaugural no College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura F. A. Sampaio. 6ª ed. São Paulo: Loyola, 2000.



LIMA VAZ, Henrique C. de. Fenomenologia do ethos, in: H.C. LIMA VAZ, Escritos de filosofia II: ética e cultura, SP: Loyola, 1988, pp. 11-35.



PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. Ed. 34.



RUSS. Jacqueline. Pensamento Ético Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999.



SEARLE, John. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.




[1] Termo hispânico.

[2] Termo hispânico.

[3] Conforme John Searle, Intencionalidade.

[4] Pregação do Pe. Fabio de Mello, scj, realizada em 2/7/2006 em São José do Rio Preto/SP, CD-ROM, fornecido pela Igreja Matriz de Promissão/SP.

[5] O significado é você quem emite.

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