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A MENTIRA MAIS CRUEL

Ildo Meyer
Médico
Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS

Já imaginaram como seriam as relações se os pensamentos fossem abertos e pudessem ser lidos pelos outros? Provavelmente a convivência se tornaria impraticável. Atração, desejo, amor, fantasia ou suas ausências seriam captadas por telepatia instantaneamente.

Raiva, desprezo, falta de admiração e ímpetos de terminar um relacionamento não teriam a possibilidade de dissimulação. Quem sabe assim teríamos um mundo mais honesto, mas estamos preparados para isto?

A resposta é um categórico NÃO. Desde que o homem começou a falar, inventou a mentira romântica. Aquela que é dita dentro de um relacionamento amoroso para agradar ou não magoar o outro. Funciona como uma forma de ilusão, ajudando a formar casais, construir famílias e viver em sociedade. Talvez o nome “mentira romântica” não seja o mais adequado, pois mentira não tem nada de romantismo, mas enfim...

A maioria das pessoas não tem sequer a coragem de discutir os problemas do cotidiano, os sentimentos, as mudanças no desejo e em seu objeto, e não quer encarar de frente a situação. Isto leva parceiros a mentir para que o assunto “nós dois” seja adiado indefinidamente.

Uma mentirinha aqui, outra ali, uma omissão acolá e todos saem mais ou menos felizes. Ninguém ferido mortalmente. Uma solução fácil, rápida e sem muito sofrimento. Será mesmo? A mentira romântica se tornou um mal necessário e até mesmo uma rotina em nossas vidas. Funciona como uma espécie de calmante, formando uma nuvem de fumaça colorida, com efeito sedativo imediato e quase sempre de confusão a longo prazo.

Assim como o álcool, este tipo de mentira também é tolerado em doses pequenas, pois existe um reconhecimento não formal de que nem sempre nossos sentimentos são compatíveis com o modo tradicional de relacionamento e com as regras que nós mesmos criamos. Assim, a falsa moral releva e até perdoa estas “pequenas mentiras”, que passaram a ser usadas quase que sem pensar em suas conseqüências.

Atire a primeira pedra quem nunca falseou com a verdade para não desagradar ao outro. Talvez algumas raras e virtuosas pessoas jamais escondam seus sentimentos, mas para a maioria dos seres humanos, mentir é simplesmente inevitável.

Acontece que não existem mentiras pequenas ou meias mentiras. Neste território insalubre só existem duas possibilidades: verdade ou mentira. E a mentira tem um preço. Não gostaria de entrar no mérito da quebra de confiança ou nas conseqüências das ditas mentiras criminosas, intencionais, premeditadas, do tipo não roubei, não trai, não fui eu...o foco aqui são as mentiras sentimentais, românticas, utilizadas como amortecedores contra a dura verdade. O preço a pagar é a omissão de uma parte dos sentimentos em troca de falsas declarações. Pensar algo e dizer o contrário.

Muitas vezes quando um parceiro pergunta ao outro se esta gordo(a) ou bonito(a), na verdade gostaria de saber se ainda é amado(a), apesar da imagem corporal que esteja apresentando. Se o companheiro tenta agradar e desonestamente responde que está bonito(a), quando o percebe gordo(a) e desengonçado(a), pode estar criando um problema para ambos. Não seria mais correto afirmar: eu te amo, mesmo com esses quilinhos a mais...?

Ao dizer aquilo que não se pensa estamos praticando uma agressão, mas não contra quem recebe, e sim contra quem a pratica. Será que não dói dizer eu te amo, quando o que existe mesmo é dependência econômica, insegurança e medo da solidão? Ou não dizer, quando o sentimento é mais do que evidente?

A traição é contra os próprios sentimentos, contra a honestidade e contra o eu interior, que se tiver um pouco de integridade e consciência vai ter que escutar a voz contrariada dos sentimentos reclamando das palavras ou atos praticados. O grande problema talvez nem seja a mentira propriamente dita, mas os motivos que nos levam a mentir, pois as mentiras mais cruéis são aquelas que dizemos para nós mesmos, em silêncio.

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