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Por que a Filosofia Clínica é Filosofia?

Raquel Camargo
Filósofa Clínica
São Paulo - SP

A primeira grande justificativa que poderíamos dar à Filosofia Clínica para ser chamada de Filosofia reside no fato de que todo o trabalho que ela realiza é fundamentado no denso conhecimento produzido em mais de 2500 anos de história da Filosofia: são teorias, conceitos, sistemas filosóficos etc., que, com devidas adaptações, servem-lhe de base e sustentação, desde sua metodologia geral até os procedimentos clínicos mais específicos. Entretanto, não é este o aspecto fundamental que, a meu ver, legitima que a Filosofia Clínica traga, em seu nome, o termo Filosofia. O que faz da Filosofia Clínica Filosofia são, propriamente, as significações mais essenciais que caracterizam fundamentalmente o termo Filosofia e que aqui, na Filosofia Clínica, encontram-se por assim dizer ‘objetivadas’. Dito de outra forma, a Filosofia Clínica é Filosofia porque ela abarca e realiza tudo aquilo que o termo Filosofia traz de mais essencial.

A Filosofia nasceu – e nasce sempre, em cada ser humano capaz de pôr em movimento, por si mesmo, seu próprio pensamento – por um maravilhamento, encantamento, pasmo, estupefação, assombro, enfim, qualquer estado de grande comoção produzido pelo contato do indivíduo humano consigo mesmo, com os outros e com o mundo que o cerca. Diante do fenômeno de si mesmo, do outro e do mundo, o homem, espantando-se com tamanha complexidade, empenha-se em tentar abarcar seus porquês, em compreender suas razões. Podendo escolher entre diversas formas de satisfazer a essa busca, entre elas uma explicação mítico-fantástica às suas indagações de porquês e razões, o homem vale-se, entretanto, de uma reflexão ordenada, rigorosa, sistemática, metódica, lógica e racional, ou seja, o logos. Vale-se de uma reflexão que parte de evidências – e que, invariavelmente, acaba na reconsideração de tais evidências. Em sua aventura de desbravação do conhecimento, o homem logo descobre que por mais que se busquem as razões, sempre haverá elementos ainda a serem conhecidos, quantitativa e qualitativamente. A reflexão filosófica que nasce da tentativa de satisfazer às indagações humanas causadas pela comoção diante da incomensurável complexidade dos fenômenos que se dão ao nosso conhecer é, assim, inesgotável. Desde sua origem no tempo cronológico da história humana, há pouco mais de 2500 anos, e refletindo o caráter infindável do próprio conhecimento que se pode ter do mundo e do humano, tal reflexão nunca findou: deu voltas e voltas, chegou inúmeras vezes aos mesmos pontos de partida, reconsiderando-os sob outros pontos de vista, percorrendo os caminhos sob outras perspectivas...

É deste modo que a atitude ou postura filosófica caracteriza-se por ser incansável, investigativa aos extremos – mas com ordem, método e logicidade – e imparcial. Tendo ciência da complexidade inerente a qualquer fenômeno, e desejando acima de tudo conhecer seu objeto de investigação para além de suas aparências, o mais próximo possível de sua essência, o verdadeiro filósofo observa-o e investiga-o imparcialmente, da maneira a mais neutra possível, sem confundir os conteúdos que lhe são próprios com o conteúdo do objeto que se dá ao seu conhecimento. Isto não quer dizer que o homem, enquanto filósofo, isto é, enquanto assume uma postura estritamente filosófica perante o mundo, deva assemelhar-se a um recipiente absolutamente vazio – visto que tal coisa seria impossível; de qualquer forma, haveria pelo menos ar lá dentro... Por imparcialidade da postura filosófica entende-se que o verdadeiro filósofo não investiga o mundo para aí encontrar a prova da legitimidade de seus pré-juízos; investiga-o para compreendê-lo e abarcar suas razões da maneira a mais próxima possível, para daí então construir juízos de conhecimento que sejam mais adequados, apropriados, verossímeis. Seu conhecimento filosófico acerca do mundo não é a priori, mas a posteriori à sua experiência de investigação.

É ainda importante voltarmos a atenção para outro aspecto essencial da reflexão filosófica: nela nunca se perde de vista a consideração todo/partes, nunca se deixa de contextualizar as partes num todo e de se pensar sobre as relações entre o todo e as partes, bem como aquelas que se verificam entre as próprias partes. O conhecimento assim produzido é fortemente marcado por um caráter totalizante, rigoroso e racional, mostrando-se como o mais seguro possível quanto à possibilidade de incorrência em erros.

Mas a esta altura um espírito um tanto desavisado e não menos contemporâneo poderia, inquieto, indagar: “E para quê todo esse conhecimento? Para quê todo esse esforço, esse rigor em investigar tão incessantemente as coisas do mundo? A vida urge; por que parar e pensar tanto sobre sua natureza e suas razões?” Não são necessárias grandes e detalhadas explanações para evidenciarmos que hoje tais questões não são nada incomuns; na realidade, a Filosofia quase tem de se ‘desculpar’ por sua postura, sua atitude e mesmo sua essência perante os imediatismos que tanto caracterizam a vida pós-moderna. O que vemos por trás dessas indagações é o preconceito, infelizmente tão difundido, de que a Filosofia não passa de uma mera livre especulação, quase sendo como um mero ‘divertimento metafísico’, cuja vida existiria apenas em meios acadêmicos; algo que, portanto, no que se confere ao âmbito prático, não serviria para nada. De fato, a própria Filosofia não é nada imediatista, muito menos o pretende ser; os resultados de sua reflexão, do conhecimento alcançado por sua atividade, podem demorar consideravelmente ao longo da história a atingir o âmbito prático da vida humana; no entanto, é exatamente esta a instância que a Filosofia põe-se como objetivo. O filósofo busca incessantemente a compreensão do mundo e da humanidade não por uma simples curiosidade, visando a um mero deleite com o conhecimento obtido. Por trás de sua postura determinada, incansável e rigorosa está o desejo de viver mais adequada e apropriadamente, isto é, está o desejo de tirar proveito deste conhecimento para a melhora da vida da humanidade como um todo e no trato com o mundo. De tal modo que, baseados nos resultados da atividade filosófica, ao nosso espírito desavisado e inquieto de há pouco, tão pragmático e tão concentrado na fruição daquilo que o mundo tão breve e urgente tem a lhe oferecer, poderíamos com propriedade responder que, se não fosse a Filosofia, se não fossem indivíduos que assumissem uma postura genuinamente filosófica perante o mundo, ele, espírito tão prático, talvez ainda acreditaria que o sol é que gira em torno da Terra, que os trovões e tempestades seriam a expressão da ira das divindades; deveríamos explicar-lhe que ele próprio, numa acepção mais ampla, indivíduo cidadão de uma sociedade democrática e liberal seria, sem certos conhecimentos produzidos, sistematizados ou fundamentados pela Filosofia, simplesmente inconcebível. E isso somente elencando alguns simples exemplos...

Assim, o ser humano filosofa, antes de tudo, pelo compromisso que tem consigo mesmo, com sua vida, com a vida da humanidade e com o mundo que o cerca. É por isso que, de seu pensamento, da Filosofia, derivam a Ciência, a Ética, a Política etc.. A Filosofia começa no humano visando ao humano. O humano é seu ponto de partida e sua linha de chegada. É seu ponto de partida por ser uma atividade genuinamente e por natureza humana – com efeito, nenhum outro animal experimenta qualquer tipo de consciência e comoção perante si mesmo e o mundo e é tomado por um movimento de busca de suas razões –, e por ser uma reflexão que toma por objeto essencial de investigação o próprio humano, juntamente com o mundo que lhe é circundante e que se lhe dá ao conhecimento. E o humano também configura-se como ‘linha de chegada’ da Filosofia por ser neste âmbito que está sua finalidade, isto é, por visar à (re)construção do próprio humano. O que vemos de ‘mágico’ na Filosofia é que em sua tentativa de compreender o homem e o mundo, de buscar suas razões, ela acaba por também construí-los. Refletindo sobre si mesmo, o homem compreende-se desde seu íntimo até suas circunstâncias, e o que inevitavelmente decorre deste processo é seu encontro com sua autonomia de pensamento e com a liberdade e responsabilidade por sua própria vida, pela construção de si mesmo, da humanidade como um todo e – reconhecendo-se como um agente construtor e transformador – do próprio mundo e da realidade.

Pois bem, e o que a Filosofia Clínica tem a ver com tudo isto? Por que, afinal, ela é Filosofia? Prossigamos por partes.

Vimos que para haver Filosofia é preciso que haja, de um lado, um espírito investigador e, de outro, um objeto a ser investigado. Vimos que a reflexão que atende a essa investigação, que por sua vez nasce de um estado de grande comoção, é séria, rigorosa, lógica, racional, metódica... Que nunca deixa de considerar o todo e as partes, de contextualizar em seu meio o objeto investigado. Vimos também que pela natureza inesgotável do conhecimento que se pode ter deste objeto a investigação é infindável; que por isso mesmo o investigador assume uma postura incansável e imparcial. E, finalmente, enfatizamos o caráter essencial e genuinamente humano do filosofar e sua importância ou mesmo necessidade para a (re)construção do próprio humano, do mundo, da realidade. Agora veremos como tudo isso está fortemente presente na Filosofia Clínica, com a única diferença de que aqui a investigação e a reflexão sobre um objeto são feitas não por um, mas simultânea e conjuntamente por dois pensadores, pelo menos (no caso da clínica individual). Explicarei logo.

O primeiro momento da clínica filosófica dá-se no encontro entre o partilhante que traz suas questões, a serem partilhadas e trabalhadas, as quais constituem aqui, com tudo o que as causa, influencia e envolve, o objeto de investigação, e o filósofo clínico, que o auxiliará nesse processo. Obviamente, o que se vê em clínica freqüentemente não é um estado de comoção, digamos, agradável perante as questões; o partilhante não chega marcado por um maravilhamento, encantamento etc., diante do que está ocorrendo a si mesmo e às suas circunstâncias, mas pode vir marcado por um certo desconforto, descontentamento ou mesmo desespero em relação ao que lhe vem ocorrendo; precisamente um certo estado desagradável que o leva a procurar a clínica, que o leva a procurar um trabalho sério para que possa encarar, conhecer, compreender e resolver suas problemáticas.

Na outra ponta da relação filosófica está, como dissemos, o filósofo clínico. Este disponibilizará ao auxílio de seu partilhante todo o conhecimento que tem da história da Filosofia, todo o conhecimento sistematizado da Filosofia acadêmica, bem como o domínio e a prática de um pensamento inteiramente pautado na reflexão que já caracterizamos em ser ordenada, lógica, rigorosa etc.. Sua postura diante das problemáticas e do relato de seu partilhante será profundamente marcada pela imparcialidade: em seu trato com o partilhante e com o que ele traz não usará, absolutamente, de interpretações, teorias prévias, tipologias, conceitos de patologia ou normalidade etc.. Procurará sempre contextualizar adequadamente todo o conteúdo que lhe for apresentado: qual a circunstância do partilhante, como este lida com o tempo, consigo mesmo e com os outros (informações que retira dos Exames Categoriais); procurará identificar as relações significativas que há entre o todo e suas partes, bem como as de entre as partes (por exemplo no trato com a Estrutura de Pensamento). O filósofo clínico tem plena ciência dos limites que necessariamente se lhe impõem em relação ao conhecimento desse universo único que é o partilhante; porém, unidas sua imparcialidade e o rigor de sua reflexão, além de sua postura determinada e incansável, o conhecimento acerca desse universo configura-se como sendo o mais próximo possível.

Mas o mais interessante que se verifica nessa nova atividade denominada Filosofia Clínica é o fato de que o filosofar não se exerce como atitude exclusiva do profissional chamado filósofo clínico. Na clínica filosófica o próprio partilhante torna-se filósofo de si mesmo. Ele pode, paulatinamente, ir se afastando da condição que o tenha levado à clínica, situação de desconforto ou até desespero que talvez turvava-lhe o pensamento e a clara compreensão das razões de sua problemática, estado este que poderia comprometer o sucesso de boas escolhas, à medida em que vai, gradativamente, tomando parte ativa na reflexão e compreensão de suas dificuldades, tomando a si mesmo, a suas circunstâncias, sua história, como objeto de observação e de uma investigação sincera e bem ordenada. Ou seja, no processo da clínica filosófica, o partilhante aos poucos vai tomando parte ativa no próprio filosofar, não se encerrando como o mero objeto passivo deste. É por esse motivo que na Filosofia Clínica o partilhante não é ‘paciente’; não é considerado como um indivíduo em situação desconfortável, anormal ou simplesmente patológica, ao qual uma teoria prévia e acabada será aplicada. Em outras palavras, em Filosofia Clínica não se menospreza a autonomia de pensamento daquele que a este trabalho terapêutico vem procurar. O filósofo clínico simplesmente o auxilia, sem afrontar violentamente seu universo constituinte, no processo em que ele próprio, partilhante, assumirá sua autonomia, responsabilidade e liberdade de pensamento e de escolha, com a maior clareza e conhecimento possíveis. – É deste modo que a reflexão que marca o processo da clínica filosófica (individual, pelo menos), é posta em movimento por dois pensadores, e não simplesmente dirigida por um profissional terapeuta a um paciente.

O resultado de todo este trabalho – digamos, em parceria – é o beneficiamento ao próprio humano. A Filosofia Clínica é um exercício, como a própria Filosofia, que se origina do e se direciona ao humano. É um exercício pelo qual se refaz o caminho de construção do humano, caminho este que também acaba por reconstruí-lo, transformá-lo. Pensando a si mesmo e à sua circunstância, aos outros de sua relação, ao mundo e à sua realidade, o partilhante encontra-se com a possibilidade de talvez re-construir seu universo inteiro, não apenas no sentido de acompanhar os passos pelos quais ele como um todo veio a ser, mas também no sentido de modificá-lo, aprimorá-lo.

Finalmente, por tudo o que foi exposto até aqui, torna-se clara a legitimidade de a Filosofia Clínica trazer em seu nome o termo Filosofia, não apenas pelo fato de tal trabalho estar inteiramente fundamentado no conhecimento produzido pela Filosofia. – Afinal, atualmente há certas atividades que nasceram da Filosofia e que, contudo, não conservam quase nada do que é marca essencial da postura filosófica, chegando por vezes a negar ou negligenciar seu valor. A Medicina, por exemplo, cuja origem remonta à Filosofia, hoje parece simplesmente ter perdido a capacidade de consideração da relação partes/todo, por estar cada vez mais especializada. A própria Ciência, tal como a concebemos atualmente no Ocidente, em grande parte (não inteiramente, é claro, mas em grande parte), acabou por tornar-se uma indústria de inovações tecnológicas por vezes efêmeras, que não vêm atender a grandes porquês ou a princípios éticos. (Muitas vezes, a Ética é simplesmente deixada de lado...) – A Filosofia Clínica traz o termo Filosofia em seu nome porque ela é, precisa e inteiramente, Filosofia; porque ela faz, propriamente, Filosofia.

Em seu artigo no segundo número da revista Discutindo Filosofia, intitulado “Por quê?”, a professora de Filosofia da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP, Marta Vitória de Alencar, coloca-nos precisamente a questão do aparente ‘lugar perdido’ da Filosofia em meio ao mundo imediatista pós-moderno. Diante do ‘frenesi’ de novidades tecnológicas de tirar o fôlego do indivíduo, a quem se impõe a fruição automática, breve e sem grandes razões de infindáveis inovações e entretenimentos, o paciente filosofar parece ter perdido a própria legitimidade ou justificativa. A autora chama-nos a atenção para a urgência da atitude filosófica nesta sociedade pós-moderna; a urgência de o homem re-assumir uma postura filosófica perante o mundo e a si mesmo, sob pena de, em caso contrário, simplesmente ser tragado pelo consumo infindável de objetos e informações. E à luz deste artigo afirmo que, sem um exercício propriamente filosófico, corremos o risco de sermos como um objeto entre tantos outros, à mercê de condições que nos escapariam totalmente, regidos por uma heteronomia. Correríamos o risco, sem exagerar, de perder um caráter essencialmente humano. Como dizem os autores Giovanni Reale e Dario Antiseri, a Filosofia é tão essencialmente humana, tão genuína e naturalmente humana que, se abdicássemos dela, estaríamos sendo menos humanos. A Filosofia põe o homem como sujeito de si mesmo, da humanidade e do mundo. Como define tão bem a atitude filosófica Marta Vitória de Alencar: “Filosofar é estar no mundo, é ser propriamente humano – um ser ativo, pensante, autor consciente das próprias ações e capaz de transformar a própria realidade.”. Vimos que, por tudo o que foi exposto, a Filosofia Clínica é o espaço em que este filosofar tem seu lugar salvo e garantido; é o espaço em que o indivíduo, que talvez se encontre em dificuldade de resolução de seus questionamentos e problemáticas, dificuldade até mesmo de pensar com clareza por si mesmo, recupera, por si próprio, sua autonomia, faz-se presente e ativo em seu próprio mundo, faz-se agente livre e responsável por seu próprio ser e realidade. Assim, podemos afirmar, ainda também sem exagero, que a Filosofia Clínica não só é, de fato, Filosofia, como talvez seja uma das atividades mais estritamente filosóficas de hoje em dia, realizando as significações mais fundamentais caracterizantes do termo Filosofia.

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