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SER LIVRE É TER UM AMOR PRA SE PRENDER

Ildo Meyer
Médico
Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS


Todos passamos por mudanças. Cada fase de nossas vidas é como uma espécie de adaptação na forma de encararmos o mundo, de resolvermos nossos impasses, de tentarmos um crescimento pessoal. E essas mudanças são percebidas em todas as pessoas. O famoso artista espanhol Pablo Picasso, por exemplo, não fugiu à regra e pincelou cada metamorfose com cores e estilos diferentes. Sua juventude lírica deu origem à fase rosa da pintura, a guerra espanhola foi retratada sob a forma expressionista, e assim ele foi pintando suas telas de azul, preto, marrom, conforme as cores de sua vida. Também eu me modifico, e por meio das palavras tento entender-me e expressar minhas idéias.

Neste momento sinto necessidade de escrever na primeira pessoa. É a fase do “eu”. Preciso esclarecer que nem tudo necessariamente aconteceu da maneira literal como está escrito. A veracidade ou não dos fatos é um privilégio, ou sacrilégio de poucos com quem divido minha intimidade, mas a mensagem e os sentimentos descritos são absolutamente fiéis.

Gosto muito de praticar a corrida. Correr é um exercício completamente diferente de caminhar, e a diferença não é somente na queima de calorias, mas principalmente no tipo de emoção despertada. Quando se caminha, um pé fica firme no chão enquanto o outro está no ar, fazendo o movimento para o próximo passo. Um dos pés sempre está na terra. Na corrida, os dois pés, em determinado momento, ficam no ar. E esta sensação assemelha-se a um vôo, a ser livre. Quem já experimentou correr e sentiu esta liberdade, não quer mais voltar a caminhar.

Imaginemos agora um casamento. Papéis estabelecidos e juntamente com eles, a divisão de espaços e desejos com um parceiro. Aos poucos vai surgindo uma sensação de sufocamento e um dos cônjuges começa a sonhar com um mundo livre, sente vontade de sair e pegar o ônibus para a “Estação Liberdade”. Comportamento mais do que natural, pois as melhores idéias sobre liberdade foram escritas no cárcere.

Depois de mais de uma década de casamento tradicional, o divórcio atinge em cheio o casal. Junto com ele, a fase inicial de novas amizades, festas, relações sem maiores compromissos e o já conhecido discurso de que não voltarão mais a morar com outra pessoa. Aconteceu comigo e com mais de metade da torcida do flamengo. Acostumados a caminhar no casamento, com a separação experimentamos correr e sentimos o gostinho da liberdade. Um sabor maravilhoso, tentador e que vicia a ponto de tornar o usuário escravo da mesma.

Quero poder tomar um choppinho com os amigos quando tiver vontade e sem hora pra voltar, assistir o programa da Hebe sem culpa, cortar as unhas do pé em privacidade, namorar só quando um estiver a fim de ver o outro e não precisar mais dar satisfação pra ninguém. Aquele velho blá-blá-blá de sempre. Caminhar nunca mais, casar nem pensar, compartilhar virou palavrão...Será que isto é liberdade?

Um dia você conhece uma pessoa interessante, atraente, que lhe desperta aquela admiração que precede a paixão. Você a convida para um fim de semana na serra, tomam banho juntinhos, dançam coladinhos, conversam fazendo cafuné, assistem um filme no sofá, fazem juntos um brigadeiro de panela e dividem lambendo os dedos um do outro. Voltam já apaixonados. No outro final de semana ele(a) quer repetir a dose. Você também, mas ao mesmo tempo não quer perder o jogo de futebol, a festa da turma da academia, o almoço com a família. A tentação da liberdade começa a perturbar a relação e sem que você perceba, joga um balde de água fria na paixão e acena com outras opções mais interessantes que não vão atrapalhar seus planos. Você escolhe os amigos e as possibilidades futuras. Isto é liberdade?

Ser livre nem sempre é só seguir a sua própria vontade; às vezes consiste justamente em fugir dela. A prisão não são as grades ou o compromisso com alguém, e a liberdade não são os amigos, a rua e as festas. É uma questão de escolhas. Ser livre é sentir a tranqüilidade de estar acompanhado de alguém com quem se pode ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se sinta incomodado, é poder cair pregado de sono logo após o jantar sem precisar ficar seduzindo, é contar uma fraqueza, pedir um conselho, derramar lágrimas de alegria e também de tristeza... “Ser livre nesta vida é ter um amor pra se prender” – Carpinejar – e eu acrescentaria, “escolhendo e construindo juntos o tamanho e modelo da prisão em que vamos nos prender.”

E voltando à analogia inicial, se a corrida nos dá a sensação maravilhosa de liberdade, de voar com o vento batendo na face, a caminhada também tem seus atrativos. Numa caminhada podemos conversar comodamente com outra pessoa, podemos dividir as impressões que a paisagem nos causa, podemos compartilhar sutilmente um toque de mãos (experimente correr de mãos dadas...), podemos dividir as tristezas e as alegrias e o mais importante, com alguém que caminha no mesmo passo...

No treino da vida, há de se ter a sensibilidade para perceber o momento certo de iniciar uma tresloucada corrida, como também a hora de acalmar os passos e caminhar de mãos dadas. Todo bom atleta sabe disto, e o bom amante também.

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