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Uma realidade inusitada

Ana Cristina da Conceição
Filósofa Clínica
Porto Alegre/RS


"Toda forma de espírito verdadeiramente original cria a forma lingüística que lhe é apropriada".
Ernest Cassirer


O fenômeno ao despontar diante de nós, pode provocar uma sensação de desconforto e pré-juízos, nesses casos, o incômodo fica completo. Diante dele não sabemos como proceder. Desconhecemos sua linguagem e limites.

A sensação de impotência toma conta e o medo, às vezes, fala mais alto. Podemos desistir e deixar de lado a possibilidade de experimentar coisas novas. Por outro lado, ao ultrapassar o primeiro impacto, a vida pode proporcionar experiências cheias de originalidade.

Eu, por exemplo, cresci ouvindo muitas coisas sobre hospitais psiquiátricos: “lugar onde os loucos estão internados, pois são pessoas perigosas e não devem conviver em sociedade, desatinados e gritam o tempo todo, também não conseguem se comunicar. Sua fala é incompreensível e sem nexo. Se irritados, são capazes de agredir e até matar. Sua força é descomunal....”.

Escutava também: “eles não sabem comer direito, fazem as necessidades na cama, sujam as roupas, são descontrolados e só o remédio é capaz de alguma forma de domesticação. Para muitos deles, só resta os tratamentos de choque”.

Diante de tantos agendamentos contrários, pré-juízos e princípios de verdade dos outros, não foi nada fácil entrar num hospital psiquiátrico, como estudante de Filosofia Clínica. Nas minhas idéias complexas, logo imaginava as agressões dos ‘loucos’. Pensava que poderia me sentir mal ao estar frente a frente com eles.

Michel Foucault nos relata o alcance dessas formas de saber-poder em seu livro ‘Microfísica do Poder’: “Sabemos sobre sua doença e sua singularidade coisas suficientes, das quais você nem sequer desconfia, para reconhecer que se trata de uma doença; mas desta doença conhecemos o bastante para saber que você não pode exercer sobre ela e em relação a ela nenhum direito. Sua loucura, nossa ciência permite que a chamemos doença e daí em diante, nós médicos estamos qualificados para intervir e diagnosticar uma loucura que lhe impede de ser um doente como os outros: você será então um doente mental”.

Ao chegar no hospital psiquiátrico, pude observar alguns internos nas janelas, por trás das grades e senti ‘um frio na barriga’. Quando ingressei nos corredores, pude perceber as portas trancadas, até chegar à sala de reuniões. Nesse recinto, um pouco mais a vontade, com as enfermeiras, psicólogas, artista plástica e os filósofos clínicos da equipe interdisciplinar, me senti melhor.

Direcionamos-nos ao consultório reservado aos filósofos clínicos, após atravessar outras portas e corredores. Nossa terapia acontece semanalmente, com a ajuda da artista plástica que organiza os atendimentos.

Então veio o primeiro partilhante, e depois outro e mais outro, e depois as mulheres. A cada pessoa que entrava e saía, eu me perguntava: ‘onde estão os loucos, aqueles seres perigosos e ameaçadores que deveria encontrar num hospital psiquiátrico ?’.

Fiquei surpresa ao não encontrar ninguém sujo, cheirando mal, ou violento. Conheci gente diferente, muitas sob efeito de medicação, mas nada parecido com as estórias que ouvia. Histórias inusitadas bem em frente ao meu olhar, variadas e propondo um jeito diferente de enxergar a vida.

Poetas, desenhistas, atores e cantores, expressividades ainda vivas na minha memória. Uma das internas se destacava pela simpatia: ‘a ‘Xuxu’. Uma pessoa encantadora, vaidosa e com apurado senso estético. Chama muito a atenção pela exuberância. Gosta de estar bem vestida, com seus colares, anéis e pulseiras. Também o batom meio lambuzado em seu rosto, chamava a atenção. Os olhos da ‘Xuxu’ não perdiam nada: os mínimos detalhes dos alunos que acompanhavam os atendimentos na sala, os movimentos das mãos, braços e os sons...’

Ao final dos atendimentos saímos do consultório e deixamos o hospital. No caminho de volta, vínhamos conversando sobre as clínicas e nossa participação como observadores. Um misto de espanto, insegurança, alegria e esperança, a partir de agora, fazem parte de nosso ser um pouco mais qualificado por conhecer essas pessoas interessantíssimas: ‘os loucos’.

Na segunda vez, ao retornar ao hospital foi mais fácil. Já conhecia a equipe, já entendia melhor a razão das portas trancadas – eram para dar segurança aos internos, para quem trabalhava e às visitas do hospital – enxergava as pessoas internadas com um novo olhar. Suavizei pré-juízos e me propus a qualificar a interseção com os sujeitos singulares que iam chegando.

Hoje estou mais a vontade para ouvir, conversar e abraçar. Apesar das convivências com o inesperado, percebo singularidades surpreendentes em todo recanto daquele lugar. Ao longo dos atendimentos fui descobrindo que cada interno possui a sua linguagem. Comunica e expressa sua condição humana de um jeito só seu.

Nossa sociedade normalizada refere ser possível apenas discursos bem ordenados. Em outras palavras: somos aceitos pela compreensão que somos capazes de produzir. Já dentro do hospital psiquiátrico, um espaço privilegiado de estudos e aprendizagem, essa lógica se relativiza, dando lugar a outras formas de expressão.

Nesse sentido se direciona a reflexão de Ernst Cassirer: “Toda realidade – tanto a espiritual quanto a física – é, de acordo com a sua essência, uma realidade concreta, individualmente determinada. Por isso, afim de apreendê-la, é preciso que nos libertemos da universalidade falsa, enganosa e “abstrata” da palavra”.

Epistemologias flexíveis ou cristalizadas se apresentam e convidam a passear por suas estranhas realidades. Raciocínios diferentes para expressar idéias que seriam comuns noutras óticas. Encontramos palavras sussurradas, frases incompletas, discursos com lacunas, gestos de aspecto incompreensível, ansiedades, silêncios, lágrimas que tentam dizer algo mais, os sorrisos e gritos silenciados ou não.

Estamos desacostumados a entender e sentir a desestruturação de raciocínio como algo integrante da vida. O fato dos ‘loucos’ não se enquadrarem no sistema das lógicas da normalidade, não quer dizer que são pessoas destituídas de sentido ou razão, apenas diferentes.

O preconceito, a desinformação e os pré-juízos ainda são fortes em nossa aldeiazinha metropolitana e, tudo aquilo que não se enquadra no comportamento consensual, é visto e classificado como alguma forma de loucura.

A Filosofia Clínica no hospital psiquiátrico tem se mostrado eficiente, pelo fato de trabalhar com a singularidade, longe das tipologias. A continuidade dos atendimentos tem proporcionado descobrir que ainda existem pessoas isoladas em seu mundo e sem contatos externos. Ao propor alternativas, talvez se consiga re-significar isso tudo e permitir alguma forma de aproximação e interseção aos atendimentos.

Penso que nossa sociedade venha caminhando no sentido de tentar mudar a realidade dos hospitais psiquiátricos. Ainda vemos nossos internos como loucos, pessoas incapazes e distantes, inadequadas ao convício social no qual estamos inseridos, como o outro do outro.

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