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Estéticas da desconstrução*


"A poesia é de certo uma loucura,
(...)É um defeito no cérebro (...)
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes bravo! À inspiração divina, e, quando tremem de miséria e fome, dar-lhes um leito no hospital dos loucos..."
Álvares de Azevedo


Rainer Maria Rilke inicia em 1898, aos 23 anos, os escritos do "Diário de Florença", por sugestão de Lou Andréas-Salomé. O inevitável viria depois: uma declaração de amor à vida e à beleza. Quiçá tradução de maior alcance na insinuação plural contida na descrição dos jardins, ruelas e esculturas.

Nas páginas iniciais o poeta já busca estabelecer pontos de contato com o coração da musa. Diz sua poesia: "Minha alegria permanece impessoal e sem brilho, enquanto dela não participares como confidente - ao menos por intermédio de alguma anotação íntima e sincera sobre esta alegria em um livro que te pertence".

Entrelinhas de embriaguez no agridoce veneno da paixão. Muitas doses depois, aquilo que poderia matar preserva. Institui-se em contraveneno.

No silêncio de Lou-Salomé parecem oscilar vontades contraditórias. A partir de agora se faz fonte de inspiração ao dizer estético.

O texto evidencia uma poética das madrugadas, da perdição e do arrebatamento, sem esgotar as suspeitas de outras incontáveis sensações. As coisas ao seu redor adquirem contornos de quase gente. As letras do autor descrevem a beleza do instante, das ausências e promessas caladas.

A in-conclusão das cartas segue a parcialidade da vida. Sempre existirá algo mais a ser dito. As pessoas, as flores e o sol de cada manhã perseguem o fim do dia. Preparam a noite em rascunhos de esquiva. Quando Rilke diz "estar cada vez mais convencido de que não se refere às coisas, e sim aquilo que elas fizeram dele", desveste-se aos olhos da amada.

O desatino da paixão compõe ritos para revelar a harmonia em todas as coisas. Ânimos de poetar reflexivo ao encanto de recordar. Sugere conversar com sua musa, no entanto, parece falar para si mesmo.

A mensagem de Florença assim se diz: "A criação do artista é uma insígnia: a partir de seu íntimo ele exterioriza todas as coisas pequenas e efêmeras: seu sofrimento solitário, seus desejos vagos, seus sonhos angustiados e aquelas alegrias que perdem o viço. Aí sua alma se engrandece e torna-se festiva, e ele criou o lar digno para si mesmo".

No compartilhar das narrativas o pretexto se oferece em paradoxos de um amor viajante. O rosto esconde-se nas brumas da manhã preguiçosa. Devaneios instituem meias verdades, como uma fonte oculta pela sol. Integram-se nos relatos nem sempre próximos à literalidade dos fatos.

Ao poeta nada mais resta a não ser fazer da realidade uma poesia interminável.

Um dos trechos da diário pode elucidar para onde se dirige: "Desejo apenas, querida, peregrinar por tua alma, percorrê-la até o âmago, até o lugar onde ela se torna um templo. E lá quero erguer a minha nostalgia como uma custódia, que há de se elevar até a sua magnificência".

Pensando bem, não se trata de uma epistemologia qualquer, as poéticas estão muito próximas à desrazão.

A obra de arte do autor ensina, socializa e restitui algo que parecia perdido: ao narrar-se entremeios das viagens, recorda antigas idéias de mudar o mundo, desconstrói as lógicas da certeza e convida a um passeio por seu ser sonhador.

Nas páginas seguintes desnuda-se ao refletir sobre as obras da cidade: "Pensei que traria para casa alguma revelação sobre Botticelli ou sobre Michelangelo. No entanto, trago apenas notícias a meu respeito, e são boas notícias."

A descrição concede vislumbres dos rastros esparramados pelo caminho. Depois disso seguirá com ele em busca de outras pousadas. Rilke não diz apenas de si ao descrever as paisagens a sua amada, reinventa o mundo inteiro, ao tornar-se cúmplice daquilo que não pode ser esquecido. Assim, recria as cores, formas e adereços na provisoriedade dos seus escritos.

Talvez um novo refúgio às modificações da alma. As distâncias encontram na palavra uma aliada para desarticular lonjuras. Saudade re-significada no presente das paisagens ao redor. As vontades apreciam restituir pela saudade a fonte de onde tudo partiu.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico
Coordena a Filosofia Clínica na Casa de Saúde Esperança e Secretaria Municipal de Saúde Mental em Juiz de Fora/MG e São João del Rei/MG, respectivamente. Diretor do Instituto Packter.

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