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Filosofia clínica: retomada do olhar filosófico

Miguel Angelo Caruzo
Filósofo Clínico
Petrópolis/RJ

“Somente quando a estranheza do ente nos acossa, desperta e atrai ele a admiração. Somente baseado na admiração [...] surge o ‘porquê’. Somente porque é possível o porquê enquanto tal, podemos nos perguntar, de maneira determinada, pelas razões e fundamentar. Somente porque podemos perguntar e fundamentar foi entregue à nossa existência o destino do pesquisador.” (HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica?. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 242.)


Hoje a filosofia acadêmica ensinada nas faculdades e universidades tende a ser uma grande assimilação dos conteúdos escritos dos pensadores que nos precederam. Heidegger nos advertia em suas obras sobre a possibilidade mais comum entre os homens, que é o de estar na inautenticidade.

Esta consiste no olhar derivado do mundo, na perspectiva mais cotidiana, vivendo segundo o que “se diz”. Ao contrário da autenticidade, que se dava com o olhar mais voltado para o espanto e admiração diante do que nos rodeia ou constitui nossa existência, partindo para uma experiência mais pessoal e profunda.

A inautenticidade na filosofia se mostra costumeiramente quando ao ler um filósofo, nos contentamos em compreender o conjunto de palavras escritas no livro. Mesmo que o significado de sua lógica escrita tenha ficado claro para nós e possamos até passá-los adiante, isso não é filosofia.

É falar da referência feita pelo filósofo sem, contudo, voltar-se para o referenciado de fato. Ou seja, se fala de uma flor a partir de tudo o que foi escrito sobre ela, mas, não é aguçado o olhar quando, ao deixar o texto, se observa uma flor no cotidiano.

A autenticidade heideggeriana trata evidentemente de instâncias bem mais profundas. Mas, para a compreensão nossa, vamos pensar mais concretamente.

Quando Heidegger se refere ao espanto e admiração da realidade, ele nos remete à experiência da própria vida. Um filósofo não escreve para nós ficarmos “divagando” sobre a composição de sua estrutura escrita.

Escrever é posterior ao filosofar, ao pensamento. Primeiramente, o filósofo dá-se conta de algo, isso o causa certo espanto; em seguida, com admiração própria de quem se depara com o que estava velado no cotidiano, tenta compreendê-lo e, somente depois disso, se põe a escrever.

Portanto, seu escrito é uma busca para que nós nos voltemos para o que ele observou, para o objeto de sua experiência. Cada filósofo nos propõe um caminho para sua experiência, e seus escritos são meios e não fins em si mesmos.

Lúcio Packter, pensador da filosofia clínica, talvez possa nos ajudar nesse caminho. Por meio da filosofia clinica podemos deixar a massa inflexível de nossas buscas filosóficas de compreender o mundo, e nos voltarmos para um sistema que aguça nosso olhar sobre o mundo que nos cerca.

Desde Sócrates, a filosofia busca a compreensão partindo do homem. E a filosofia clínica parte desse grande mistério que é a humanidade. Mas, não busca estereotipá-la com definições pré-concebidas ou generalizar o ser humano em uma espécie de gavetas prontas, nas quais podemos colocar cada pessoa segundo um aspecto mais generalizado.

Heráclito nos apresenta o devir. Eis uma possibilidade de abertura para a compreensão do mundo: “ninguém entra no mesmo rio duas vezes”. Tudo muda. Não há fórmulas definitivas nem opções perfeitas.

Os livros de auto-ajuda se multiplicam e os problemas humanos continuam. Talvez os mais beneficiados com a venda desses livros sejam os autores, os editores e as livrarias. Digo talvez, pois, para algumas pessoas as dicas podem funcionar.

Seguindo o raciocínio do devir heraclitiano, Heidegger, utilizando a perspectiva grega sobre o que é a verdade, apresenta o desvelar.

Segundo o filósofo da Floresta Negra, nos abrimos à manifestação do ser que se mostra e, ao buscarmos definições que mais limita e afasta a significação do desvelado, o mesmo ser se esconde. É a dinâmica do movimento. Não há fórmulas definitivas. Podemos nos abrir ao devir do que se mostra a nossa frente, e apenas no movimento do espanto e admiração, mantermos nossos olhares aguçados para o amor ao saber.

Filosofia clínica é uma grande possibilidade, não definitiva nem única, para aguçarmos o olhar sobre esse desvelar de uma humanidade que pede ajuda, mas, está cansada de fórmulas prontas. A felicidade, busca de muitos humanos, tem significados diferentes. E não nos cabe julgar o certo e o errado. Cabe a nós apenas auxiliá-los em suas realizações. Não temos a verdade absoluta.

Nosso pensamento somente concebe o perfeito no pensamento, quando de fato o que vemos é movimento, é o devir.

Observar os homens a partir da filosofia clínica, nos tira da ótica da busca por mudar o mundo e nos propõe uma admiração pela busca e história da cada ser humano para sua vida.

O respeito que a filosofia clinica nos incute, leva-nos a ser mais contemplativos da humanidade, do mundo, e menos manipuladores com nossas fórmulas prontas para “engavetar” cada tipo que encontramos.

O caminho proposto por Packter é o do olhar para o que desvela, para o devir do que se mostra. Não o do olhar petrificado dos escritos que são vistos em si mesmos como o contemplado pelo filósofo.

Portanto, possa a filosofia clínica tornar-se mais conhecida a fim de que os olhares sejam mais filosóficos e menos pedantes. Que nossas universidades se abram cada vez mais a esse novo modo de ver o mundo, sobretudo, a humanidade, e conduzam os alunos para além dos sistemas escritos, aguçando-lhes o olhar para o que de fato os filósofos perceberam.

Que a abertura filosófica ao mundo, ao homem, à existência, seja o princípio do filosofar autêntico, espantando-se com o que vê com admiração e busca por compreensão.

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