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Quem são os verdadeiros artistas?

Ildo Meyer
Médico e Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS


Cada vez que o circo chegava à cidade era uma festa. Esperava a semana inteira pelo domingo para ver os palhaços, trapezistas, mágicos. Lembro até hoje da lona suja e rasgada, das cadeiras e arquibancadas de madeira, da serragem misturada com o barro do chão, do cheiro do leão, do urso, dos macacos...

Vibrava e achava sensacional quando anunciavam o domador espanhol Antonio Sanchez, o equilibrista chinês William Wu e a dançarina francesa Margot Delamour, verdadeiros artistas que colocavam a cabeça dentro da boca do leão, andavam em cordas nas alturas, tudo meio improvisado, sem grande segurança, mas com um fascínio impressionante.

Hoje o circo mudou.

A referência é o Cirque Du Soleil, onde espetáculos são realizados em teatros com poltronas luxuosas, artistas internacionais mascarados e sem identificação, ausência de animais, ingressos pouco acessíveis à população de baixa renda e tendo a tecnologia como base de todo o show.

A concepção lúdica do circo é feita em escritórios e estúdios que projetam cenários e efeitos especiais em laboratório para depois buscarem artistas que se encaixem no roteiro. Assim são contratados campeões de nado sincronizado, atletas olímpicos e dançarinos de rua que jamais pensaram em se tornar artistas, para viabilizar a concepção dos produtores.

Na medida em que se consegue criar a imagem de um leão feroz quase real, o domador não precisa mais ser um destemido artista. Um bailarino é capaz de fazer uma performance mais teatral e substituir o velho chicote por um bastão de laser. Luzes, música, fumaça, dão suporte às possíveis deficiências do dançarino, que através de efeitos especiais alcança a glória, mas paga o preço de ficar incógnito.

Hospitais também mudaram. Médicos eram os artistas e o hospital apenas a lona que abrigava e acolhia o espetáculo, que improvisado, sem grandes recursos, mas com muita filantropia, era acessível à população.

Assim como no circo, a tecnologia entrou na saúde e promoveu um avanço inquestionável, suprindo deficiências de olhos, mãos e ouvidos humanos, conseguindo magicamente “enxergar” e “atuar” no interior de pacientes de maneira não invasiva.

Hospitais passaram a comprar equipamentos diagnósticos e terapêuticos de última geração, melhoraram a resolução dos problemas, aumentaram os custos e à semelhança do Cirque du Soleil, passaram a contratar médicos que se adequassem às suas demandas, em alguns casos, pouco importando a identidade do profissional.

Tecnologia, mídia e poder econômico ao criarem curas e sonhos, tornaram estruturas mais importantes que palcos.

Artistas e médicos foram gradativamente sendo substituídos, passando a ser reféns de gestores e diretores.

Em que pese tudo isto, a vida continua sendo o grande espetáculo ao qual todos são convidados a participar, alguns criando ilusões, outros sendo levados pelas aparências, outros mais vestindo máscaras e se despersonalizando...

Não sei qual será o próximo ato, mas no dia em que o leão de verdade fugir da jaula, não poderemos nos iludir, precisaremos mesmo é de domadores e médicos.

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