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TE PERDÔO POR TE TRAIRES

Ildo Meyer
Médico e Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS

A lavanderia manchou seu vestido, o computador novo apresentou defeito de fábrica, clonaram seu cartão de crédito, seu candidato não cumpriu as promessas de campanha, o gato do vizinho arranhou seu carro, você foi traido(a) por seu companheiro(a). Calma, não é seu dia de azar, são apenas exemplos para pensar se é fácil perdoar indiscriminadamente ou se algumas situações são mais graves que outras e por este motivo, não merecem perdão.

Seja honesto agora, você ficaria mais feliz se perdoasse, ou se pudesse se vingar para que sentissem a mesma ou ainda mais dor que lhe causaram?

Provavelmente a gênese da maioria das situações que envolvam perdoar ou não, está em promessas descumpridas. Amantes que fazem juras de amor eterno e depois descumprem, produtos e serviços que não correspondem ao anunciado , erros e falhas humanas, etc.

Mal intencionadas ou não, estas promessas descumpridas refletem a imperfeição humana. Não só dos outros, mas nossa também ao nos iludirmos, ao não compreendermos exatamente o que nos dizem, ao nos comportarmos diferente do esperado.

Sendo assim, a culpa pela traição é somente do traidor? Nem sempre. O traidor também pode ser a vítima. A primeira pessoa a se trair é sempre o próprio traidor, pois antes de ferir ao outro, está renegando uma promessa por ele feita. Está primeiramente traindo a si próprio. Outras vezes, a traição é a única ou a última alternativa que restou ao traidor para resolver determinada situação, pois a traição nem sempre é realizada somente por quem realizou o ato, atitudes inspiram atitudes, tanto para o bem, como para o mal.

Não estou defendendo a traição como solução final de problemas nem pregando a absolvição da mesma, apenas ponderando que a culpa pela traição necessariamente não é apenas do traidor. Chico Buarque de Holanda em um verso célebre já abordava a questão quando cantou “te perdôo por te traíres”.

Nem sempre temos uma parcela da culpa, mas é bom que façamos uma auto-critica antes de sairmos acusando. Colocar-se no lugar do outro , inverter os papéis, pode ser um bom exercício antes de qualquer julgamento precipitado.

Mas o que dizer do assaltante, do estelionatário, do estuprador? Vamos perdoa-los e assim seremos felizes? Não, perdoar não significa aceitar o comportamento que nos prejudicou, nem tampouco a renúncia aos valores violados. Perdoar não significa simplesmente, indulto, desculpa, remissão de pena. Perdoar é uma virtude. Não é somente dizer as palavras “Eu perdôo”, colocar o bandido atrás das grades, ou aceitar o(a) companheiro(a) de volta e esquecer tudo. Para perdoar é necessário paciência, tolerância, compaixão e tempo. Não estamos falando em tempo para esquecer. Perdoar e esquecer são coisas diferentes. Perdoar não é esquecer algo doloroso que aconteceu.

Ficar nutrindo rancor e desejando vingança é como tomar o veneno e esperar que o outro morra Perdoar é a decisão racional de se desvencilhar destes sentimentos nocivos, deixar de gastar energia e sofrer sobre coisas que não se pode mudar e não se tem poder. Liberar a dor, o ressentimento e a raiva que estavam sendo carregados como um fardo e que acabavam por ferir a própria pessoa. Mágoas envelhecidas transparecem no rosto e nos atos, acabando por moldar toda uma existência.

Perdoar é recuperar o poder, pois o que aconteceu deixa de ser relevante e não tem mais influência alguma. Perdoa-se também para manter viva a memória do mal praticado, como um sinal de advertência. Sem o perdão, a memória seria dolorosa, e por vezes insuportável. Pode-se até dizer que o perdão é a superação do passado em benefício do futuro. Resumindo, não se perdoa as pessoas porque isto fará bem a elas, mas porque fará bem a quem perdoou. Deixa-se de ser vítima.

Perdoar não é algo tão simples que possa partir de uma leitura, uma boa educação e uma predisposição por um mundo melhor.

Talvez os seres humanos esqueçam mais do que perdoem. Talvez os seres humanos perdoem a maioria das vezes por fraqueza do que por virtude. Talvez perdoar seja somente para os Deuses. Talvez pela falibilidade humana de uns e pela fraqueza e incapacidade de um perdão sincero de outros , não consigamos atingir a felicidade absoluta. Talvez ainda tenhamos muito que aprender em relação ao perdão, mas o único pecado sem perdão, certamente é pecar contra a esperança.

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