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A lógica dos casos perdidos*


“Sabendo que não há causas vitoriosas, gosto das causas perdidas: elas exigem uma alma inteira, tanto na derrota quanto nas vitórias passageiras.”

Albert Camus



É incrível tentar descrever os atendimentos de casos perdidos. Àqueles bem depois da sentença diagnóstica do médico ou da interdição jurídica. Um mundo de recursos pessoais desmerecidos a se encontrar na subjetividade confusa. Algo permanece invisível nas entrevistas da razão.

Uma geografia insinuante e sedutora costuma cegar a pessoa na relação consigo mesma, sob as mais variadas justificativas. Nesses casos é comum a cumplicidade para sustentar suas rotas de colisão.

A atração das axiologias, imperceptíveis quando desejam ofuscar epistemologias, por exemplo, é capaz de desconstruir os raciocínios mais bem postados. Elaborar armadilhas e sustentar paixões dominantes podem se esboçar nalguma forma de dependência, na relação do personagem com os princípios de verdade, recém inventados na teia de sua imaginação. Enquanto o vínculo interno é de prazer e auto-realização, os desdobramentos externos indicam caos e derrocada.

Estranha lógica a oferecer atrativos sedutores à pessoa ao desabrigo de si mesma. Assim flerta, seduz e atrai irresistivelmente suas vítimas, ainda quando elas dizem ter o controle da situação. Nesses casos o lugar que se oferece é o conforto existencial no fundo do poço. Um endereço atraente, se vinculado a cegueira tóxica a contaminar a estrutura subjetiva refém de suas certezas.

Essa ótica dos casos perdidos faz referência ao transbordar pessoal na direção do equívoco, do engano, do auto-extermínio, ainda que sob as mais distintas máscaras existenciais.

A pessoa assim estruturada, ao produzir escândalos, para, na seqüência surgir como salvador da pátria, deixa entrever, ao olhar mais apurado, sua real motivação: chafurdar na miséria para se alimentar. Como um colecionador de adversidades, seu centro de gravidade é um misto de armadilha conceitual e paixão dominante, enredado nas idéias complexas de uma vida desiludida.

Sua estrutura de realismo fantástico costuma ser a ante-sala das crises. O refúgio, nalgum festejo meteórico, desdobra velhos conhecidos na miragem de ser algo mais. Essa penúria exótica e fugidia aprecia surgir satisfeita consigo mesma, ainda quando sugere outras coisas.

Refém do olhar de compaixão admirada dos outros, sua atitude de aparente sofrimento, faz referência aos labirintos do acaso, num complexo manipulador difícil de vislumbrar a olho-nu. Seu recordar sobre o acolhimento da lama, ainda quando refere o contrário, atualiza agendamentos ao fracasso.

Assim os jogos de linguagem elaboram monólogos para justificar as conquistas da decadência. Os personagens, até então imaginários, ganham uma vida que se parece, cada vez mais, com a tapeação do seu autor. Uma espécie de protagonista em enredos de final infeliz.

Num mundo assim estruturado, vencer significa perder, os álibis de causa própria sustentam a sedutora decadência. Sua influência, mesmo em instantes de alegria, se faz lembrar, ao destacar alguma censura em viés de renúncia.

Os padrões de extravio se instituem como uma droga irresistível. Uma singular acrobacia existencial costuma alimentar a lógica dos casos perdidos. Parece focar sua vida em busca de autodestruição. Um ponto de apoio onde o sujeito alastra abismos.

Viciado nas penas auto-impostas mantém distante aquilo que poderia desconstruí-las. Em uma vida ao sabor dos ventos contrários sua expressividade aprecia deixar sinais, um pouco antes de se desrealizar.

A tendência excessiva ao recolhimento interior, sentimento de autocomiseração ou a preferência ao desalento, apreciam a companhia irresistível das drogas, a festejar a iminência da sarjeta.

Quando refere amanhãs é como pressentimento de errância, perdição ou abandono, como uma conversação enredada em si mesma. Assim a estrutura retórica das causas perdidas possui aliados sofisticados: um pessimismo camuflado, a sensação de beco sem saída e a realização nas desilusões cotidianas. À esse contexto, é inacreditável perceber que a sensação de desmoronamento existencial faz bem.

Nesse ponto de vista, os assuntos últimos aparecem travestidos de justificação, fundamento ou vocação. A coerência notável de seu discurso atua como jogo de cena, onde as coincidências se encontram como se fossem itens do acaso. As críticas, aconselhamentos ou súplicas, servem para acentuar a integração entre paixões e armadilhas.

O olhar de nojo ou desmerecimento só faz alimentá-los, no sentido de que se abastecem das distorções ao seu redor. Essa lógica da antítese faz referência à singularidade desconhecida em cada um.

Num mundo assim estruturado as cogitações padecem em um escasso limiar, ainda assim, sua epistemologia se multiplica na contradição com aquilo que tenta excluí-la. O Quixote amordaçado se realiza nas conjecturas de lógica insensata.

Uma mescla de verdades parece rascunhar algo por vir, no entanto, essa pequena brecha não chega a transpor as frágeis suposições. A pessoa congela o que poderia ter sido com o prazer das promessas não cumpridas. Espécie de embriaguez cotidiana para efetivar profecias.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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