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Fragmentos filosóficos delirantes XXXV*


"Esperar clarear, para andar no calçadão. Quando me recomendou arejar o juízo andando no calçadão, meu combativo analista me disse: "Você vai fazer uma coisa que vai mudar a sua vida." Como todo mundo, principalmente escritor, quer mudar de vida, topei. De fato mudei, agora fico bestando, esperando clarear para andar no calçadão."

"Recebo uma beijoca de uma senhora encanecida, que se confessa minha fã. Emocionado, fecho os olhos e penso que foi a moça do saiote. Agradeço penhoradamente e sigo em frente glorioso."

"Ao atravessar a avenida para tornar à casa, topo com Zé Rubem Fonseca, barbado e embuçado, que finge que não me vê. Deve ter ingressado na carreira de crítico literário. Ou então deve ter acatado um conselho do analista dele. Deixo-o em paz. Mais tarde telefono e digo a ele que meu computador é maior que o dele. Isso mata o bicho."

"Primeiro o expediente. Dois fax ( faxes ? Pensando bem, esqueçam que perguntei, chega de gozação com a minha condição de acadêmico). Dois esse negócio que chega pelo fio do telefone, ambos do Ministério da Cultura e ambos endereçados a João Ubaldo Ribeiro Filho. Respondo ou não respondo, já que não sou João Ubaldo Ribeiro Filho (e, aliás, prefiro João Ubaldo de Oliveira, já estou mais acostumado)? Opto por não responder, não quero assumir falsa identidade. Além disso, essa coisa de João Ubaldo Ribeiro Filho pode não cair bem com minha mulher. Fax à cesta. Que mais? Diversos convites para trabalhar de graça, como sempre. Convites à cesta. Originais que querem que eu leia. Não leio, mas não tenho coragem de atirá-los à cesta e ponho-os na pilha piramidal que já me entope o gabinete e já me rendeu ameaças de divórcio. Cartas a responder. Respondo depois."

"Trabalhando em mais uma obra-prima. Quanto mais escrevo, mais difícil fica. Talvez deva dar outra andada no calçadão, antes de pegar nisso. Não, não, nada de correr da presa, ao trabalho. Além disso, como tomar um uísque escondido no Diagonal, no fim da manhã, sem muita culpa? Não, senhor, escrever. Que coisa mais besta, esta, o sujeito sentado aqui, escrevendo uma porção de histórias que nunca aconteceram, sobre gente que nunca existiu. Um amigo meu, quando me queixei, me disse que não fui eu quem inventou isso, que, desde que o homem aprendeu a escrever, escreve histórias. Ou até antes de escrever, como no caso de Homero. Portanto, não tem nada de ficar questionando, tem é de sentar aqui em frente ao monitor e mandar ver. Mando ver, saem umas mixariazinhas desconsoladas. Amanhã eu conserto, ou então depois de amanhã. Mas ninguém pode dizer que não trabalhei, Deus é testemunha. Uísque no Diagonal."

"Paranóico sendo, suponho que de nascença (recusava-me a nascer e só fui aparecer — a fórceps — depois de dez meses de gestação), de vez em quando me vêm pesadelos, quase certezas, sobre como seremos legislados para a prática de todos os atos de nossa vida, privada ou não."

"No Brasil, podemos não estar na vanguarda tecnológica. Mas, na legislativa, acho que de vez em quando damos mostras de que temos condição, havendo vontade política, de aspirar a uma posição de destaque. Agora mesmo, leio aqui que se encontra em curso, na Câmara de Deputados, um projeto para a regulamentação da profissão de escritor. Já houve uma tentativa anterior,aliás estranhamente apoiada por alguns escritores profissionais, que não vingou. Mas deve ser uma área atraente demais para ainda não estar regulamentada. Claro, nem todas as atividades, ofícios e profissões estão ainda regulamentadas, mas a dos escritores parece ser importante em excesso, para tão prolongado esquecimento governamental."

"Os sindicatos da categoria, naturalmente, assumirão atribuições formidáveis, com o decorrer do tempo. Ficar contra a maioria, por exemplo, poderá render expulsão e a conseqüente impossibilidade de exercer a profissão. Não está tampouco fora de cogitação que um sindicato muito atuante emita, depois das tradicionais assembléias tumultuadas, palavras de ordem a seus filiados. A política do sindicato, por exemplo, poderia ser não aceitar, sob penas variadas, que se escrevessem romances de amor ou literatura igualmente alienante. Quem escrevesse, além de punido, seria traidor da categoria. Para não falar em greves, obrigando os laboratórios farmacêuticos (pensando bem, talvez eles mereçam) a mandar um representante à casa de cada consumidor, para expor-lhe oralmente o conteúdo da bula e matando de fome heróica os que, como eu, vivem da ingrata pena."

"E, ça va sans dire, chegará o dia dos cursos. A coisa ficará um pouco fora de controle, haverá escritores de carteirinha em demasia, muitos despreparados para o exercício do mister, o descalabro terá que acabar. Para resolver isso, será criada uma comissão de notáveis (falar nisso, onde andam as comissões de notáveis, outrora tão abundantes e comentadas?), que, após dois anos de jetons e denúncias de interesses escusos, recomendará a criação de cursos superiores para escritores. Talvez como especialização, ou pós-graduação, dos atuais cursos de letras. O que vai interessar é o diploma para tirar a carteirinha. Para os veteranos, como novamente eu, talvez se consiga um provisionamento ou se exija um examezinho de habilitação, mas ainda assim a velha guarda será encarada com desprezo pelos novos, por faltar a ela a verdadeira formação profissional."

* João Ubaldo Ribeiro

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