Pular para o conteúdo principal
Coisas que ficaram pelo caminho

Lúcio Packter
Pensador da Filosofia Clínica
Porto Alegre-RS


Há aspectos corriqueiros no consultório, eventos que se repetem, que fazem parte dos protocolos e das rotinas da profissão. Um destes elementos diz respeito às coisas que ficaram pelo caminho e que usualmente a pessoa pode entender como terminadas, bem ou mal, acabadas.

Esta impressão se deve muito a fatores como a distância entre os eventos, o tempo que passou, outros acontecimentos que surgiram e que desapareceram depois, entre outros elementos. Quanto a isso, temos caracteres internos, constitutivos de cada questão, que promovem ajustes. Um exemplo: há oito anos, um câncer de mama, debelado após uma extensa ação cirúrgica, causou grande susto.

O tempo passou, nunca mais nas relações desta pessoa, e ela com ela mesma, ninguém retornou ao tema. Tumor extirpado e assunto igualmente morto. Quando, no entanto, em uma noite numa formalidade de formatura na Universidade, o tema é ventilado diante da pessoa, o que acontece? Acontece uma enxurrada de emoções, lembranças, pensamentos e alguma somatização. O assunto não estava ultrapassado, vencido, cicatrizado?

Existem peculiaridades que precisamos citar aqui. Um tema pode renascer, uma questão já vivida pode ser atualizada mediante novos dados ou o que parece uma retomada pode, em verdade, ser um fato inédito. Neste último caso, um fato novo pode conduzir a pessoa a entender que se trata ainda do antigo fato, algo que ela achava ter caducado com o tempo e findado.

A dramaticidade da manifestação deve ser pesquisada. Uma pessoa pode conversar calma e formalmente, sem qualquer traço de afetação ou emoção, sobre um tema que lhe foi imensamente traumático, evidenciar raciocínios complexos e teorizações sobre o que houve, tudo isso propiciando a aparência de que o tema foi de fato morto, sepultado, chegou ao fim. Trata-se de um erro comum, tomar a maneira como a pessoa discorre sobre um assunto, sua placidez, com a efetivação de questões pendentes; erro comum.

Qual a anatomia de fenômenos como este? Alguns dos eventos que ocorriam em nossas vidas, pela relação que estabeleceram com outros, não morrem. Permanecem, podem se modificar, se atenuam ou se agravam, mas dificilmente padecem a ponto de sucumbir e desaparecer. Outros destes eventos ganham endereços e feições novos, mas na essência prosseguem iguais.

Mas há elementos ainda mais profundos e complexos que costumam aparecer por aproximação, referência, citação, quase nunca diretamente. Um destes elementos mostra o que houve nos arredores do evento. Vamos a um exemplo: em certa ocasião fiz atendimentos a uma freira que prestou trabalhos missionários na África. Ao retornar, ela passou a apresentar um quadro atípico de sintomas próximos ao que a Medicina denomina depressão.

Após uma série de consultas ao longo de três meses, algo se precipitou e anunciou o que estava acontecendo: não o trabalho, mas as amizades, as localidades, as relações que ela estabeleceu deixaram uma lacuna com a qual ela não teve como lidar, como encaminhar, como vivenciar em formas usualmente encontradas como a saudade, a esperança, etc. Ou seja, o epicentro de um fenômeno é às vezes o local de menor intensidade das manifestações.

Coisas que ficaram pelo caminho, algumas delas encontraram um canto existencial no acervo da pessoa onde podem viver, estão bem e prósperas entre camadas periféricas da lembrança, dos eventos, da vida; são importantes em sua identidade e constituição de algo que existe como um dispositivo de ter ficado na passagem de outros. Muitos nem sequer podem viver de outra forma. E os cuidados em torno deste entendimento são, às vezes, o destino que estas questões terão.

Comentários

Visitas