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Doutor, eu ando sobre as águas!*

"Se não fizesse versos
Enlouqueceria.
Minha saúde mental
Depende da poesia.”
Prado Veppo


Assim se inicia uma viagem pelos arredores do recomeço, onde a palavra mais antiga se encontra com seus rituais de anúncio. Interseção entre o esboço dos primeiros traços e os símbolos originados na conversação.

Nessa época as mãos e braços podiam servir para acolher, cuidar, abraçar tudo ao seu redor. Um tempo onde os dias e as noites se encontravam para passear e se alimentar dos diálogos intermináveis, tudo era bem vindo. Os passeios seguiam as madrugadas, ao jardim cabia reinventar amanhãs.

Alimento vigoroso num romance do sereno com a lua. As lágrimas oferecidas pelo céu nutriam o terreno dos brotos. Nesse tempo, se sabia sem pensar: sonho e realidade aconteciam no mesmo lugar. Depois foram chegando outras razões, algumas delas encarceraram e destituíram àquelas de legalidade, jamais da legitimidade sonhadora.

Nesse sentido, o exercício da clínica existencial elabora suas próprias lógicas, muitas vezes, indecifrável ao saber conhecido. A maioria dos eventos aprecia escolher o momento e a melhor companhia para se fazer visível. Nesses raros intervalos, a pessoa permite compartilhar uma ótica diferenciada, mesmo quando o técnico impõe corrigir seu foco.

Uma visita aos contornos desse refúgio existencial, às vezes esquecido pelo próprio sujeito, pode conceder vislumbres sobre sua natureza e alcance. O aprendizado com a dialética dos excessos oferece matéria-prima às futuras intervenções, elaborações da subjetividade em seu devir de rascunho.

Na casa das pessoas interessantes (hospital psiquiátrico), com a incrível filosofia clínica das singularidades, tem sido possível aproximar, interagir e conhecer melhor a linguagem significativa da desrazão. Ao movimento desajustado das escutas e visões, o sujeito em estado nascente, procura um terreno para suas verdades. As miragens oferecem alternativas através das experimentações.

Muitas vezes, os vultos e vozes tentam mostrar, ao próprio partilhante, suas possibilidades desconsideradas. Esse outro, a dizer coisas sem sentido, parece entrever horizontes inexplorados. Talvez sua tradução possa desvelar a interseção entre esse estranho e sua autoria, num vocabulário em busca de superar o meio hostil onde se encontra.

Como se estivesse a proteger recantos, esses traços, cores e sensações costumam reapresentar promessas desmerecidas, atualizadas numa perspectiva errante e de linguagem mal-dita. Ao ser tratado pela farmácia comum, pode ter o dever de utilizar disfarces, quem sabe assim, o projeto recém chegado encontre o tempo necessário para ser viável.

Para esquecer aquilo que precisa ser esquecido, o viés da fantasia pode ser um aliado e provocar uma desconfiança generalizada ao seu redor. Os ensaios existenciais fora de foco possuem uma fenomenologia obtusa, apreciam surgir em linguagem própria e onde menos se espera. Assim, as palavras podem querer dizer algo mais, sobre esse personagem a lhe perseguir.

Alguns exemplos: “Minha cabeça diz coisas que não entendo”, “Os móveis da casa me pedem para mudar”, “Meu espelho fala comigo”, “Eu caminho sobre as águas”, “As paredes e as portas estão se abrindo”, “Estou morrendo”, “Ontem eu vi o futuro”, “Eu sonhei com um barco que afundava”.

Assim é incrível perceber o absurdo desmerecimento dos próprios rituais de libertação e expressividade, mesmo quando sugere outro a conversar consigo mesmo. Na voz das incertezas, sobressaltos e espantos, uma invisibilidade vai deixando rastros ao observador aprendiz. Algo começa a surgir nas conjecturas sobre coisas vividas e não vividas. Tem-se a impressão de um andarilho a preparar sua mochila existencial.

A cultura onde se vive pode significar veneno a pessoa em seus primeiros passos. Dependendo onde se nasce, pode ser melhor passar a vida inteira ao sabor dos ventos da errância, numa liberdade distante do conforto oferecido pelos construtores de grades e muros. É provável levar algum tempo até se achar um lugar adequado para viver, instantes em que um artesão pode surgir de onde menos se espera.

Um dos caminhos é tentar compreender a visão do visionário, as vozes a dizer coisas sem sentido, as retóricas da contradição. Muitas vezes um esforço solitário, para desajustar os agendamentos ao qual foi submetido, para deixar tudo como está. O discurso normal encontra na atitude delirante, um poderoso foco de estética e desconstrução.

Quando a perspectiva marginal se oferece ao centro das atenções, pode ser uma avassaladora fonte de epistemologia. A estrutura assim descrita parece colecionar subterfúgios a uma casa, até então, desconsiderada, como um pré-sujeito a rascunhar novos endereços existenciais.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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