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O SILÊNCIO QUE ACOLHE

Sueli Vaz Calvet de Magalhães
Filósofa Clínica
Santos-SP


Gostaria de relatar uma ida minha ao Teatro, quando a noite terminou com forte emoção e muitas reflexões. Era uma noite fresca em São Paulo, dia 26 de Fevereiro de 2011, o Teatro Tucarena. A peça, Dueto Para Um, uma adaptação de um dos textos mais conhecidos do inglês Tom Kempinski, inclusive virou filme em 1986 dirigido por Andei Konchalorsky e roteirizado pelo próprio Tom Kempinski, no Brasil foi batizado de Sede de Amar tendo a atriz Julie Andrews no papel do personagem Stephanie.

Texto bem escrito, diálogos fortes, a história verídica conta a trajetória da renomada violoncelista inglesa Jacqueline Dupré, que no auge da sua carreira profissional, vê-se impedida de exercer sua vocação por adquirir uma doença degenerativa. A violoncelista vivia em Londres, concertista de renome internacional, era um dos gênios da arte interpretativa do séc. XX segundo João Carlos Martins. Casada com o pianista e maestro Daniel Baremboim é por ele incentivada a procurar uma ajuda terapêutica para cuidar da depressão que começa a se instalar e da dramática condição física em que se encontra, em cadeira de rodas buscando uma nova maneira de conviver com a doença.

O texto de Tom Kempinski teve a tradução de Ana Saggese, direção de Mika Lins e em cena os atores Bel Kowarick como Stephanie, e Marcos Suchara como Dr. Feldman. A peça transcorre num palco giratório, onde encontram-se o médico e sua paciente em cadeira de rodas. O diálogo acontece num ambiente com pouca luz e direcionada apenas nos atores, a trilha sonora originalmente composta por Marcelo Pellegrini com violino solo e violoncelo, percorre todo o texto e ajuda a compor a beleza e a dramaticidade das falas.

A história de Stephanie é contada em seis sessões de terapia, de um lado a paciente que vive com o marido, está bem financeiramente, profissionalmente faz o que ama, mas abruptamente vê-se impedida de se dedicar à música, de outro, o médico psicanalista buscando razões para os medos de Stephanie, tentando decifrar enigmas de sua história.

Fui levada a escrever sobre esse texto magnífico por ter vivido momentos de profunda angústia ao presenciar naquele diálogo um impedimento claro na questão da escuta na terapia, e pensar sobre a premente necessidade do respeito à fala do outro.

A vida de Stephanie é apresentada pelo Cena Paulistana como: “Para ela está tudo bem. Tem um bom marido, uma boa vida e vai superar tudo. Será tão fácil e simples assim? Nas sessões de terapia Stephanie, sem querer ou sem poder evitar, deixa aparecer seus medos e revela as partes mais sombrias de sua história”. Essa apresentação deverá nortear daqui por diante a reflexão sobre a construção dos diálogos médico-paciente.

Gostaria também de pontuar certas diferenças entre a abordagem terapêutica da Psicanálise e da Filosofia Clínica dentro do contexto das sessões de terapia que aconteceram com Stephanie e o Dr. Feldman, fazendo algumas citações de Gilles Deleuze.

Inicia-se a peça, entra em cena o Dr. Feldman, senta-se em sua cadeira e segura em suas mãos um pequeno caderno e uma caneta. A seguir entra sua paciente Stephanie em uma cadeira de rodas e apesar de um pouco constrangida apresenta-se, fala sobre sua doença e conta que o marido a incentivou a procurar ajuda. Fala da música como sendo sua vida e lembra que apesar de não conseguir tocar, pode fazer outras coisas, como por exemplo, dar aula, ensinar jovens a tocar.

Começa a primeira sessão da terapia com a fala do psiquiatra quase imediata fazendo a indicação de remédios controlados, segundo ele, para que ela melhorasse, explicando a quantidade necessária e quantas vezes deveria tomá-los por dia. A paciente se surpreende, tenta reagir contra a medicação, mas resignada aceita e sai de cena.

Retornando para a segunda consulta Stephanie apresenta-se diferente do dia em que chegou, agora mais lenta nos gestos, no pensar e no falar, a medicação começa a agir no seu organismo de maneira que ela se vê alienada do seu ser. Dr. Feldman revê a medicação e ela é orientada a continuar com a nova medicação.

Na terceira e quarta sessões da terapia, começam as perguntas direcionadas, primeiro sobre o marido da paciente. Stephanie sente-se alterada pela medicação, talvez seja difícil ter pleno domínio sobre seus pensamentos, ela extremamente irritada com as questões colocadas volta-se para o Dr. Feldman e afirma enfurecida “eu vivo bem com meu marido, você não me ouve”. É assustador entender a dor existencial de Stephanie que permanece ali sem nenhuma alternativa a não ser a de estar sendo arguida sobre suas relações com o marido que ama e tem uma vida tranquila.

Seguem as sessões, quinta e sexta, Dr. Feldman tenta encontrar o que perturba Stephanie e com o poder da sua especialidade vai percorrendo outros caminhos, direcionando a clínica, agora arguindo Stephanie sobre questões da sua relação com o seu pai e depois com a sua mãe. A paciente mostra-se perturbada, perdida em suas conclusões, a sessão torna-se tensa.

Dr. Feldman deixa transparecer seu incômodo ao constatar o sofrimento de sua paciente, se empenha arduamente como profissional no intuito de curar esse sofrimento de Stephanie. Mas, o que pode ser sofrimento no entendimento de Stephanie, sobre qual sofrimento estaria o Dr. Feldman lutando para dissipar? Não sabemos, ele não perguntou.

Parece em vão o esforço profissional do Dr. Feldman para que Stephanie consiga reorganizar e viver sua vida apesar da doença. Por mais que tente resolver a questão da sua paciente, o diálogo continua marcado pelo abandono e solidão de Stephanie, ao terminar a encenação da peça a paciente já sem força, comunica ao seu médico psicanalista “você não me ouve”, e a peça termina.

Retomando o primeiro comentário do Cena Paulistana sobre Stephanie: “Para ela está tudo bem. Tem um bom marido, uma boa vida e vai superar tudo. Será tão fácil e simples assim?”. Eu, responderia que depende muito da escolha da abordagem terapêutica que a pessoa vai escolher para trabalhar suas questões.

Não me pareceu que o Dr. Feldman tenha ouvido a fala da sua paciente naquilo que era verdadeiramente seu, pareceu-me sim ter feito escolhas sobre quais seriam suas necessidades, e na clínica esteve lutando para persuadi-la. Para Deleuze a psicanálise não permite que emerjam enunciados próprios da fala da pessoa:

"(...) a psicanálise é uma máquina já pronta, constituída com antecedência para impedir as pessoas de falarem, portanto, de produzirem enunciados que lhes correspondam e que correspondam aos grupos com os quais eles encontram afinidades. Ao se fazer analisar, tem-se a impressão de falar. Porém mesmo que se fale à vontade, toda máquina analítica é feita para suprimir as condições de uma verdadeira enunciação. O que quer que se diga é preso numa espécie de torniquete, de máquina interpretativa, de modo que o paciente nunca poderá ter acesso ao que ele tem realmente a dizer." (Deleuze, 2006, p. 345-346).

Afinal, apesar da doença a paciente do Dr. Feldman chega ao seu consultório com planos, explicando que está impossibilitada de tocar seu violoncelo, mas poderia ensinar os jovens a tocar. Havia nela uma clara determinação, uma busca que a movia para uma alternativa de vida profissional.

Na filosofia clínica a abordagem terapêutica seria outra, várias sessões seriam reservadas para ouvir a pessoa a quem chamamos de partilhante, porque partilha conosco suas questões. Não faríamos indicação medicamentosa, sem antes conhecer todos os dados da estrutura de pensamento do partilhante e para isso precisaríamos abrir várias gavetinhas vazias para preencher com dados encontrados na pessoa, porque não há dados prontos ou receitas de tratamento para oferecer a quem nos procura, não há uma teoria analítica constituída e pronta para ser utilizada.

Essa teoria será construída tendo como suporte, num primeiro momento, apenas o silêncio e o ouvir atento, e será nesse silêncio que acolhe a fala do outro onde haverá espaço para a produção de enunciados verdadeiros, ou seja, que os enunciados produzidos pelo partilhante correspondam a sua fala pessoal. Não deve haver interferência do filósofo clínico na formação de enunciados do seu partilhante, porque o objetivo é que ele esteja sempre na posse e construção da sua fala, do que tem a dizer.

Retomando, agora, o segundo comentário do Cena Paulistana sobre Stephanie: “Nas sessões de terapia Stephanie, sem querer ou sem poder evitar, deixa aparecer seus medos e revela as partes mais sombrias de sua história”.

Com a paciente medicada a organização dos seus pensamentos ficam diferentes de quando não medicada. Começam as questões direcionadas e Stephanie não compreende porque seu psicanalista faz determinadas perguntas sobre sua relação com o marido, ela diz claramente “você não me ouve, eu vivo bem com meu marido”. As sessões se sucedem e o Dr. Feldman continua direcionando suas questões relativas à relação de Stephanie com seu pai e depois com sua mãe na tentativa de encontrar o seu problema, fica assim empenhado em curá-la. O que se vê agora é uma mulher fragilizada, tensa, exaurida em suas forças físicas e psicológicas.

Fica evidente que Stephanie ao iniciar a sua terapia aparece como uma mulher forte e com relativa esperança de refazer sua vida profissional, e vai aos poucos se tornando tensa, assustada, agressiva, confusa, sem controle sobre suas decisões. Arriscaria dizer que Stephanie foi levada no transcorrer das sessões até seus medos e às partes mais sombrias de sua história. Mas, esse não seria exatamente o objetivo da clínica psicanalítica?

Além da intervenção medicamentosa, Stephanie fica a deriva de uma interpretação do médico psicanalista sobre como deveria ser cuidada em suas dores existenciais. A abordagem psicanalítica utiliza como ferramenta um código pré-existente de teorias interpretativas que se compõe por Édipo, castração e família e segundo Deleuze esse código marca a psicoterapia como “uma máquina automática de interpretação” (2006, p.346) de modo que nenhum enunciado do paciente poderá “passar através dessa máquina analítica já pronta” (2006, p. 346).

Para Deleuze, a psicanálise é apontada como a arte de interpretar, porque “faz com que tudo o que o paciente possa dizer seja imediatamente traduzido numa outra linguagem e que tudo o que ele diga seja julgado como querendo dizer outra coisa” (2006, p. 89). O psicanalista carregado desse código pré-existente acaba por significar a fala do seu paciente, foi assim o seu aprendizado, ele não treinou a sua escuta para que livre de código possa ouvir e trabalhar com os enunciados que sejam significativos para o paciente e não para si.

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