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Talentos desperdiçados

Sandra Veroneze
Filósofa Clínica
Porto Alegre-RS


Outro dia passei horas curtindo um dos maiores poetas que o Brasil já teve. Além das músicas, li e ouvi muita coisa sobre a vida de Cazuza. Conhecido pelo estilo irreverente e provocador, o artista, carioca da zona sul, morreu aos 32 anos, vítima da Aids.

Na minha infância e adolescência, suas letras embalaram as aulas de violão e leituras reclusas. Muito embora ‘Exagerado’ combine melhor com meu tom de voz, tem uma de suas canções que me paralisam: Faz parte do meu show. Alguns dos versos: Faço promessas malucas, tão curtas quanto um sonho bom / Se te escondo a verdade é pra proteger da solidão / Encontro um amigo no peito do meu traidor... Lindíssimos.

Quando observamos a carreira meteórica de Cazuza, a profundidade de seus versos, sua capacidade de retratar toda uma geração crítica, bem-informada, e desesperada por uma razão para viver, é natural que se lamente a perda de um grande talento. É a mesma sensação pela despedida pré-matura de outros grandes artistas, como Cássia Eller e Elis Regina, só para ficarmos no campo da música.

Cazuza dizia que queria o vinho e o pão, ou seja, a fantasia e a realidade (eu também), e que gostaria ser lembrado e julgado pelo seu trabalho. Ao final das contas, acredito que é isso que todos nós queremos: deixar uma marca que justifique nossa passagem por esta vida.

Alguns chamam isso de sonho, outros de projeto de vida... Particularmente, prefiro a palavra ‘ideal’, que engloba não somente o que fazer, mas também a predisposição com a qual nos movemos. O ideal de vida, pra mim, tem a forma de uma chama, que arde no peito, e que nos leva a extrapolar os limites do próprio eu e nos leva a olhar o entorno, suas necessidades, demandas, nos convidando a disponibilizar ao todo o que temos de melhor.

Nesse sentido, é válido querer deixar uma marca no mundo pelo trabalho que desenvolvemos. Penso, porém, que não é só isso. Muita coisa boa se produz e retumbe após gerações, no nosso campo profissional, e algumas áreas são privilegiadas nesse sentido. Mas o que fazemos reflete somente uma parte de nós. De coração, acredito que o universo nos convida a deixar nele uma marca pelo que, verdadeiramente, somos, ou seja, aquilo em que de fato somos insubstituíveis.

Parece surreal, mas vale o exercício do sepultamento. “O que será que falarão de mim na hora da despedida?”. No resumo da ópera, o que fica mesmo é a maneira como usamos nosso talento, nem que seja o de fazer e conservar amigos, de encarar e superar desafios, de harmonizar ambientes, etc. Algo que não pode ser desperdiçado, seja pela morte antecipada ou simplesmente por inércia.

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