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Quase tudo por você

Luana Tavares
Filósofa Clínica
Niterói/RJ


Há algum tempo, meu filho me pediu para mudar de time (sou Fluminense e ele é Flamengo). Respondi que faria tudo por ele, mas que de time eu não mudava. É claro que ele não apreciou a minha resposta e emendou espantado: “Como assim? Você faria tudo por mim, mas não mudaria seu time por minha causa?”

A explicação é simples: seria capaz de tudo por filhos, de exercer mudanças inimagináveis, de realizar sacrifícios que podem ou não valer a pena, de morrer por eles... mas não posso alterar o que sou essencialmente. Isto está além da minha capacidade.

Entendo que na própria vida conta a compreensão de tudo o que nos estrutura, de tudo o que confere integridade até mesmo para permissões incondicionais. O que nos valida não se altera, apenas se nossa compreensão assim solicitar.

Então, para uma vida que nos foi confiada, deve haver a demanda atenta às portas que se abrem. Não me refiro ao básico, ao óbvio, mas ao que possibilita novas perspectivas na formação de um espírito em construção. E esta flecha deve ser lançada, prioritariamente, pela culatra, antes de retornar ao outro, exatamente para que exista o outro.

Conhecer-se, a si e ao outro, é um processo de alteridade, o mais desafiante, o mais instigante que talvez aconteça, mas igualmente um dos mais compensadores.

Em qualquer situação, conhecimento é um pressuposto válido, mas sabedoria é fundamental. E é sabedoria com sabor de adequação, com textura de firmeza, com percepção de entendimento. Mas sabedoria demanda tempo e não se esgota jamais. Seus efeitos são precisos.

Mas o processo de revestir-se de sabedoria, no sentido existencial, não é nada fácil de ser localizado no âmago. Muitas vezes ela nem está lá (nada demais se não estiver; não nascemos prontos e o instinto não dá conta do que nossa atual conjuntura social comporta), exigindo um esforço extra na delimitação do espaço do respeito e da ética. A lida humana tem dessas exigências.

E é preciso observar que a receita do bolo não é universal. Mesmo quando pronto, o bolo não deve ser servido a todos, pois que instinto de procriação é um atributo da espécie (neste sentido já fartamente assegurado) e não da individualidade.

Já filho é uma fascinante aventura, onde desafios e incondicionalidades se manifestam. Uma prioridade no exercício de vida para muitos, mas ainda assim não é a própria vida. Esta é uma caminhada repleta de atalhos constantes e imprevisíveis, que nos forçam a constantes e prazerosas reavaliações. E que ninguém se engane, pois haverá enganos; que ninguém se iluda, pois haverá dissabores, desgostos, frustrações.

Nossas crianças e nossos jovens precisam de apoio e orientação, não exatamente de mais amiguinhos para torcer no time. O preparo para nos tornarmos pais (de fato e de direito) exige tempo e investimento. Tempo no sentido da maturação e investimento no da vontade. Só cuida com eficiência quem tem algum conhecimento de causa... só damos aquilo que temos.

Então, que cada um se exerça como puder, se cumpra como for possível, e que tenha seus próprios filhos, a sua escolha. Mas se forem os de carne e osso, bom seria se cuidassem de atender ao caminho da edificação e da amplitude da valorização humana. Assim, a semente plantada e cultivada ao sabor da atmosfera do respeito às diferenças e às igualdades e pela respiração da vida que se renova, poderá perpetuar existências e serenidades.

Para isso, atitudes de humanidade são fundamentais e condições de limites também. Tudo, ou quase tudo, que for permeado com amor consciente, recheado com incentivos, muita conversa, troca de experiências, responsabilidade, será passível de validade. O comprometimento é com a opção, ainda que indevida. Assim, escolhas precisam ser feitas e nem sempre são as mais doces; Dizer “não”, por exemplo, pode parecer azedo aos sentidos imediatos, mas proporcionarão uma digestão tranquila ao processo nutritivo da vida.

A vida não é um projeto fechado, no qual não precisamos nos questionar, aprender e refletir. Vida é um perene cuidado e a percepção de se estar na estrada, compartilhando, é que nos permite medos e anseios, dúvidas e equívocos. Permite-nos ser humanos e ser íntegros em nossa essencialidade.

Tudo na vida é plástico o suficiente para que possa ser mudado, alterado, revertido, mas tudo cumpre seu papel. E a vida é insuficiente... exatamente por isso que a vivemos, para preenchê-la com nossas experiências e contribuições.

De volta ao futebol, lamento... sou tricolor de coração!

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