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Divagações I

Miguel Angelo Caruzo
Filósofo Clínico
Juiz de Fora/MG


O mito, tanto quanto qualquer construção referencial humana pode ser desfeito, destruído ou reelaborado pelo homem que o criou. Nenhum constructo humano cuja finalidade é compreender ou dar sentido à natureza ou ao cosmos, pode ser considerado absoluto. A experiência e os fatos demonstram que toda afirmação humana elevada à absolutização, tomando caráter dogmático – não somente no sentido religioso, mas político, social, cultural, etc. – acabou por tornar-se opressiva, agressiva ou punitiva para os que não comungaram da afirmação proposta. Os inovadores tenderam a ser massacrados pela massa que já haviam aceitado, por convenção, afirmações que um dia foram novas e agora tornaram-se “verdades”.

Tudo o que o homem tem como referencial a partir do qual todas as suas ideias são desenvolvidas vem por meio dos sentidos. No primeiro momento, os sentidos fornecem as primeiras impressões e, com o tempo, desde as primeiras abstrações, novas ideias vão surgindo, prescindindo por vezes, de voltar aos sentidos para confirmá-los ou validá-los. Os sentidos fornecem informações oriundas de algum lugar. Esse lugar não é visto em si, já que ele é reconhecido a partir do contato sensível com o homem que o conhece. Portanto, as coisas em si não são passíveis de serem conhecidas. Tudo o que o homem tem é o fruto daquilo que os sentidos o imprime.

Há ainda outros elementos que inibem a possibilidade de afirmar o conhecimento da coisa em si. Aspectos psicológicos, culturais, sociais, as limitações dos próprios sentidos, o modo como a intencionalidade foi forjada antes que um sujeito se deparasse com o objeto são alguns desses elementos. Um elemento imprescindível para o reconhecimento de que chegamos à coisa em si, é a própria subjetividade. Todos os dados externos ou objetivados pelo homem, possuem certa convenção, que passa a impressão de que todas as pessoas conhecerão ou compreenderão da mesma forma a referência externa comum.

No dia a dia da sociedade, é observável como a diferença entre os homens é clara. Na escola os alunos têm aula com o mesmo professor e a compreensão de cada aluno é diferente, como se pode notar nas avaliações. Gêmeos nascem juntos, tem a mesma criação, e ainda é possível ver desde a tenra infância, as diferenças entre eles. Poderia haver alguma objeção por afirmar que os gêmeos, por exemplo, poderiam ter recebido algum tratamento diferente, o que foi gradativamente modificando o jeito de ser deles. E uma objeção dessa forma corrobora com a subjetividade adquirida. Há ainda outro elemento, que é a imensurabilidade da particularidade interna do homem. No cotidiano, pode-se notar que alguns enxergam, ouvem, sentem, etc., mais do que outros. Os povos de países gelados percebem mais tonalidades no gelo do que quem visita a terra gelada oriundo de outro lugar.

Agora é tanto a percepção quanto a circunstância que também permitem diferenciações. Indo mais profundamente essas diferenças aumentam, pois como saber que um desenho ou palavras colocadas no papel e comumente compreendidas por todos, tem a mesma significação interna? Haja vista que por experiência, sabemos que nem sempre conseguimos expressar o que pensamos, sentimos ou experienciamos, e quando o fazemos, tende a ficar como uma exposição falha, limitada.

O que de mais objetivo se pode ter é a natureza, cujas interpretações são passíveis de serem mudadas. Todo fenômeno – a relação da coisa que se mostra e o homem que a percebe – é um fenômeno para alguém. Toda construção de mundo é paralela ao mundo e não ele em si mesmo. Tudo o que pronunciamos do mundo é atribuído por nós. Tudo o que o mundo é em si, não é apreensível. Seus acréscimos subjetivos (fruto das percepções ou oriundos delas) e derivados, (linguagem, cultura, circunstâncias, etc.), são limitados e mutáveis.

Voltando ao enunciado do primeiro parágrafo, os mitos – e aqui abrangendo toda construção epistemológica humana – são criações humanas, fruto de sua busca por compreender a realidade, o todo, a natureza, as coisas ou o sentido que elas tem na vida. E como toda criação humana, o conhecimento mitológico, filosófico, científico, é passível de reelaboração ou destruição. Tudo isso não desqualifica a busca humana, mas a enobrece. Toda busca, entretanto, deve ser pautada pela humildade de quem encontra algo e reconhece que sua afirmação acerca desse algo é sujeita a mudanças.

Como desfecho, vale lembrar a sabedoria dos pensadores que ao longo da história souberam lembrar que a relação com a realidade que nos cerca deve ser retomada voltando um passo atrás. As coisas se tornam novas, tal como o é para uma criança, cada vez que ela é tomada como se estivesse sendo vista pela primeira vez.

A filosofia – assim como toda área epistemológica humana – deve nascer do espanto que até as coisas mais simples e banais podem suscitar àquele que a nota como se fosse algo novo. E a cada tentativa de apreender a coisa como conhecida, novamente pode-se dar um passo atrás e espantar-se com a riqueza ainda não percebida.

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