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RETIRANTE DE SI*

Vânia Dantas
Filosofa Clínica
Uberlândia/MG


Vou-me embora[1] pro meu exílio[2]. A exilada procura semelhanças e não se encontra. Mora no escritório, trabalha no quarto. Às vezes procura a sorte como Macabéa[3] e teme seu fim, como acontece ao consultor de cartomante[4]. Mas seu futuro estava ali, está acontecendo tudo como foi visto. E digo mais, como foi escrito.

Especializou-se em compor mitos sobre os quais funda sua esquizo-análise[5]; escreve antes o que vai viver. Conhece o personagem de Jack Nicholson[6], nega que também tenha uma coleção de rituais para se sentir melhor e... por favor, pare de escrever e viva – mas está assim na vida, perdida!

Da percepção de Lya[7], destaco a solidão na praia. O cinza presente em tudo, como nas nuvens deste final de ano; tudo se decompõe porque ela assim se faz. Vê a dor dos outros porque também sente uma – várias: da infância, da falta, da adolescência, da idade adulta, da madureza, da velhice. Não termina feliz, mais esse mito. Mas veja, ela não construiu um mito de felicidade – coisa que ainda posso fazer por mim.

Depois de tantos simulacros que vivo, alguns dos quais estou me tentando livrar, pretendo fazer uma despedida – tive a idéia de despedida agora – purgar o que ainda há a resolver e partir para desafios, realmente, para o teste dos limites, agora que encontrei os caminhos.

Retirei-me de meus hábitos, de minha cidade, de minha vida. Com essa alergia recorrente, pareço retirar-me de mim, dolorosamente arrancada das facilidades que tinha. Ainda sei que luto muito; às vezes, por emoção se fraqueja, mas que é coisa passageira, pois não há alguém por nós. Em minutos levanto e faço o que preciso; me aguardo no hospital, faço-me comida. Caio aos pedaços em tontura com a inalação; deixo-me dormir em meu colo, em minhas mãos, mais estonteada com os remédios.

Vários sonhos já se realizaram. Preciso de metas maiores, algumas das quais estou imaginando por estes dias. Quero construir um mito saudável que vai virar filosofia. Talvez até esse trecho seja parte do artigo de novembro da FC, que você pode me ajudar a escrever.

Um “coração tropical coberto de neve”[8]; onde será seu lugar? Para não atormenta-lo, passo a escrever sob todas as regras, sejam conceituais, lógicas, éticas, gramaticais, filológicas e juro não incorrer mais em neologismos nem cair no “idiomofagia”; afinal, esse é o pacto de convivência entre os homens, o respeito aos espaços e às áreas demarcadas de terra e de conhecimento. Entretanto, ainda faço um texto informal.[9]

Agora vão as pistas, mas mais necessário do que ler com um dicionário do lado é ter um home theatre[10] completo e uma biblioteca à disposição[11] pra me encontrar ao todo.

Atenderei, com todo o meu esforço, ao imperativo categórico do dever[12], mas atendendo-o forçosamente já não estarei cumprindo fielmente o mandamento, pois que se deve agir prontamente por vontade própria, sem que passe pela cabeça a foice da coerção; a sua coerção é o afastamento.

E jurar não se jura, pois de pronto já se está imaginando como burlar o jurado e mesmo a infringi-lo. Os malabarismos do raciocínio têm exigido imenso esforço de acompanhamento lógico nas sessões. A mente do consultor filosófico vira uma mesa de engenheiro ou de desenhista de quadrinhos.

Você, como se fosse minha própria consciência, mostra minhas palavras, das quais tinha me esquecido, para exigir que eu seja eu mesma. Escondido nos textos o segredo dos escritores. É preciso entender de lógica[13] para ser sofista, mas nem lógica nem moral seguram a paixão[14].

Mulher, rainha da fantasia. Precisa ser ser do ar, pluma esquecida de sua natureza densa. Com palavras, sonha carinhos. Para o outro, que vai levar? Um conteúdo de paixão, talvez por si mesma, adornada de bolhas de sabão. Uma surpresa que vai embora, sem nem começo. A espera eterna de novo tem que fechar a janela. Uma saudade insone que respira longo, estirada feito gato, indolente nesse calor de forno. Qualquer coisa na TV, esse atrativo fatal; só vê os pensamentos passarem; sua história é mais linda porque a sente.

“Aquela poeira estava sempre ali. Cobria o chão, os móveis, as roupas, os cabelos e a pele. Turvava o olhar, mas isso já não conseguíamos perceber. A tarefa de remove-la, limpar tudo, era repetida ao longo do dia, e lá estava ela vindo não se sabe de onde. Às vezes uma revolta contra ela, outra vez resignação. A primeira tornando-se mais rara; esta última cada vez mais freqüente. (...) A poeira se levanta e facilmente pode turvar tudo, gradativamente. E podemos passar a viver por... poeira. Trocamos os fins pelos meios. Ao se remover a poeira, enxerga-se a cor verdadeira, sente-se a textura, percebe-se as formas exatas. (...) A poeira será recorrente, mas o nosso foco e a nossa atividade intencional também o serão.”[15]

Escrevo em primeira pessoa, como em algumas pós-graduações do Brasil é permitido, pois faço uma inversão e não deixo que a crônica/poesia em verso mais uma vez apareça apenas com fragmentos da fala do outro, numa mistura de recíproca de inversão que, creiam, traz muito mais de mim do que imagino.

E muitos dos que se aproximarem desse escrito lembrarão da régua metodológica[16]. Alguns serão a própria, o bicho científico, que desafia o procurador de emoções, de sensorial, de reciprocidade e de tantos outros tópicos e escava submodos para conseguir dizer se ele também é um ser humano, porque o pobre consultor avalia o outro pelo que ele é e a diferença assusta. E nada de partículas apassivadoras, vamos direto ao ponto, nomear os personagens, exceto quando ele falar de si para si mesmo, no movimento de retorno à fonte.

Enquanto o ouço, penso (o quanto consigo diminuir de meu pensamento), penso: “Puxa, com um salto desse, um desenvolvimento de raciocínio maçarocado, como ele mesmo diz, e depois com uma epistemologia e uma lógica perfeitas, pra depois voltar ao assunto imediato e jogar lances do jogo atual, o que é que eu vou dizer agora?”

O tempo todo me vigio e vigio minhas palavras. Meus sinais de pontuação. Meus rabiscos, riscos, sinais. Passo a ser lacônica nas provas para não afetar o outro, mas insisto em apresentar considerações. A falta delas é um lapso, uma perda de oportunidade para apontar/escolher caminhos. O professor é um agendamento massivo. Localizam-me nos espaços públicos; agora faço maior diferença.

E caminhos, como escolher acertadamente? Pra qual estado ir, o que será do amanhã? Como ter certeza de poder terminar os projetos antes da próxima transferência? Como deixar de ter conflitos consigo mesmo ou de ficar entre “dois rios”[17], o Paranaíba e o Grande, ou entre o Negro e o Solimões?

Voltando a Lya, o mais impressionante nela escritora é a crueza da expressão do sofrimento; e ela muito escreve sobre família – a raiz de tantos pesares por aí, é verdade. Às vezes escapa da gente um pré-juízo nesse sentido, mas é que marcou muito.

E eu estava bem crente que toda essa aventura fosse passageira como uma viagem de férias, agora não há data marcada para voltar. Nem sei se há volta; talvez eu siga pra frente, como o caminheiro que nos pede um real para continuar, mochila às costas. É isso aí.

Em julho fez frio, frio seco que penetra pela malha de fios grossos. Por esses tempos, um clima que me esvazia de minha naturalidade e de minha hidratação. Não há morros; vejo até perto os pastos do gado. Moro na parte mais plana da cidade que não tem tantos declives; coisas leves, mal dá pra fazer um teste de embreagem.

E quem me vem visitar? As bananas que trago do supermercado. Tudo tem dependido de minhas mãos, de minha decidida atitude. E não me identifico com a cidade. Não me vejo em partes dela; talvez nalgum enfeite de jardim, mas não encontro meu canto. Quebro a cabeça para saber como refletir no apartamento o que sou, para me ver direito, sentir algo familiar nesse ambiente tão diverso, de paredes brancas, de cultura e de negócios tão diferentes dos meus interesses e no qual não sei se sirvo como poderia.

Não me identifico pelas ruas, não vejo minha história nos ladrilhos e nas falhas dos passeios; raramente respiro história numa casa mais idosa que ficou, com canteiros de couve misturados a plantas de jardim intrometidas; casas baixas, sem forro, de vermelhão. Têm tempo, têm mais vida, têm história.

Penso em oferecer préstimos, quem sabe? Planejar, o eterno plano de realização; o que mais funciona em mim – atingir metas. Procuro metas, talvez crie necessidades em clientes, quanto a uma formação conteudista.

Bye bye Brasil[18]. Imagino você longe e longe é a palavra. Nem é tempo que tem tanta importância mais, é distância. Luto pra não me lembrar da verdade: estou sozinha de novo. Colecionar todos esses pensamentos que compartilhamos, os planos, a troca de motivação é que nos vai ajudar a viver. Minhas energias hora se elevam, hora estão em baixa; tenho me exigido demais, os outros também. De manhã, o clima ficou lindo, embora abafado, com nuvens misteriosas para combinar com as minhas músicas[19].

E eu trabalho. Que trabalho difícil esse, sobre mim. Fazes que retorne para o meu estudo, para aceitar que esse corpo ainda existe e perguntar porque ele se cala. A possibilidade de cultivar tudo isso de que gosto, para o que eu ainda não havia reservado espaço, me surpreende. E fico parada ouvindo essas letras, transportada para outros locais, mapas rodoviários, nuvens. Nostalgia pra que? Nasci pra isso.

Vou importando peças decorativas de Uberlândia. Como serão os próximos meses? O que vou fazer pra suportar? As pedras imóveis[20] se esfarelam à beira da estrada. Fica difícil ficar quieta aqui. Como minha mente tem que ir pra longe! O que seria eu sem a memória? Suspiro para um canto de sala vazio. Não estou aqui.

*(em homenagem a Lya Luft)

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[1] Manuel Bandeira. Vou-me embora pra Pasárgada. In: Antologia de poetas brasileiros.

[2] Gonçalves Dias, Canção do exílio.

[3] Clarice Lispector. A hora da estrela.

[4] Machado de Assis. A cartomante e outros contos.

[5] Félix Guattari. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise.

[6] Filme: Melhor impossível.

[7] Lya Luft, O exílio.

[8] João Bosco. Corsário.

[9] Ainda ouso ocultar local, editora, data, volume e outros dados.

[10] Sistema completo de reprodução de som e vídeo.

[11] Bibliotecas do Sistema S, de Universidades e corporativas.

[12] Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes.

[13] Aristóteles, Organon.

[14] Vide Abelardo e Heloísa.

[15] Carlos Pereira de Moraes, Tal qual poeira.

[16] Joaquim Severino. Metodologia científica.

[17] Skank. Dois rios.

[18] Chico Buarque, Bye bye Brasil.

[19] Seleção de Chico, Jobim, Milton, Gonzaguinha, Elis e Caetano.

[20] Raul Seixas, Medo da chuva.

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