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Loucura – danação da norma

Vânia Dantas
Filósofa Clínica
Uberlândia/MG


Pensei em escrever sobre os itens a loucura como tentação/danação à norma e observei a presença dela nos artistas, nas mulheres e nas clínicas, levada por diferentes motivos, dentre os quais a compulsão, a percepção, a sociabilidade e a mente.

Percebe-se momentos de loucura quando o ser não suporta o abstrato ou o sensorial e desmonta por dentro ou por fora, tendo como motivos o que ele acha do mundo e da vida batendo de frente com seus preconceitos, as buscas que tem em confronto com os próprios valores, e daí pra uma série de outras coordenações tópicas possíveis.

No mundo dos críticos perfeitos é possível rotular qualquer um. Segundo José Ângelo Gaiarsa , trata-se da expansão do sentimento egoísta na sociedade: o que não faz parte da família é estranho e não merece cuidado.

O cliente nem sempre tem razão simplesmente porque o ser humano não é único e universal. A sociedade é uma fábrica de alienados que atinge o seu ápice nos atendimentos de telemarketing e balcão, onde não há pessoas, mas a exigência de máscaras e tons de voz.

Por outro lado, destacamos a loucura que produziu frutos estéticos aceitos pela sociedade, como na história de Camile Claudel, musa-aluna-colega de Rodin rondada pela habilidade escultural em paranóia com a busca amorosa frustrada; a loucura de van Gogh pelo reconhecimento de si e de sua obra; a beleza da escritora Virgínia Woolf entrando no rio para morrer por seus dramas, afogando os problemas, os pré-juízos, a bissexualidade, a esterilidade uterina e a instabilidade num bilhete, o adeus desesperado ao amado, tal qual Elis Regina ao telefone, após a dose fatal de cocaína.

Sim, a poesia pode regenerar o escritor pelo encontro com o belo, mas também machucar, como a espátula na tela. Como machucava a dor de cabeça de Antonin Artaud, aliviada com ópio, gritando dentro dos sanatórios, internado por vontade própria, tal era o sofrimento; a mania de super-homem de Nietzsche (cuidado com o trocadilho, quem não conhece...), de quem receito “A genealogia da moral”, ou a moral do ressentido, afundado em despeito; a certeza da Cartomante de Machado de Assis, que guia o consulente ao seu destino, com a mesma objetividade de “O Alienista” , na mais perfeita consideração que Guimarães Rosa defende: “Ninguém é doido. Ou, então, todos” .

E como fumam os alienados... como se alienam os fumantes ao se concentrar na respiração... por que umas drogas sim, outras não? Compulsivos são eternas crianças? Substituem a comilança pela bebeção; a pizza pelo chiclete; o cigarro pela atividade física... tudo muito. Muita ansiedade, muita angústia. Vamos comer o mundo, comprar o shopping, mascar os homens, um sem-fim de rasgar o sonho – fígado de Prometeu.

E a cultura bairrista alega que a cerimônia cultivada num canto do mundo é crime noutro, quando se utilizam a coca, o daime e a erva do diabo. Ela coloca no mesmo saco a dança dos derviches, a pajelança, a mediunidade e a histeria para se resguardar na normalidade. O exagero da histeria, na etimologia vem de útero gritante; úteros enlouquecidos cospem sangue em rios, se contorcem e dão nó em corpos frágeis, chacras indefesos...

Afinal, doido por que? Doido pra que? O manifesto biológico dos hospitais tem sua explicação. Loucura como fenômeno mental pode ser desestruturação do raciocínio. Na dissecação, com tesouras fortes, “o fruto, então, se abre: sob a casca, meticulosamente fendida, surge algo, massa mole e acinzentada, envolvida por peles viscosas com nervuras de sangue, triste polpa frágil em que resplandece, finalmente liberado, finalmente dado à luz, o objeto do saber.” A noz de Foucault encerra o motivo biológico do erro comportamental e merece medicação para entrar nos eixos.

Alguns têm o sexo como instância de existência, às vezes exageradamente para seus próprios padrões, adoecidamente, culpadamente. É a pessoa que nos revela a intensidade nos conflitos com os valores que tem, no que pensa da sociedade e de si, na sua relação sensorial com o corpo, na relação abstrata com ele. Na relação sensorial com os pensamentos... na visualização com sons e cheiros...

Abstratamente composta e nefasta, assim a pessoa se vê um problema. A loucura é um caminho muito fácil para se buscar e até mesmo desejado nostalgicamente por uma geração que já não tem motivos para lutar. “Eu sou um pássaro/ me trancam na gaiola/ mas um dia eu consigo existir/ e vou voar pelo caminho mais bonito” . Assim Renato Russo narra o pensamento de Clarisse, de 14 anos, na sua tentativa de suicídio cortando os pulsos. Neste mundo de determinações sobre os estados de ânimo, todos os atos extremos seriam atentados da loucura.

1. GAIARSA, José Ângelo. A família de que se fala e a família de que se sofre.
2. ASSIS, Machado de. O alienista.
3. ROSA, Guimarães. A terceira margem do rio.
4. Foucault, Michel. O nascimento da clínica.
5. Renato Russo. Clarisse.

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