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Considerações de cinema e clínica*









A improvável interseção entre cinema e terapia faz possível sentir as influências, reciprocidades. Intermináveis derivações a partir da versão original para explorar os inéditos recantos de cada um.

Ao ser informação dirigida já é algo mais sobre a película passando. Roteirizando trajetos com recheio das simbologias discursivas, a intencionalidade aponta alegorias numa estética das fontes, um lugar onde saber_sentir é. A fita concede aberturas até então desconsideradas pelo cotidiano.

Nessa magia perspectiva uma interpretação fascinante se desdobra entre atores principais e coadjuvantes nas possibilidades de cada ato. Sua promessa indeterminável elabora uma dialética entre autor e espectador, mescla por onde se realiza a con_fusão entre realidade e irrealidade.

Seu manuscrito inicial, tornado acessível a várias frequências de percepção e entendimento, permite uma variada interação com o público, desde um visar de superfície até mergulhos mais intensos. O signo estrangeiro faz acordos de aproximação e tradução com as lógicas dessa fonte de inspiração.

Talvez a obra “Morangos silvestres” de Ingmar Bergman (Suécia, 1957), consiga traduzir esse exercício de reciprocidade, onde o médico solitário, em busca de revisitar seu passado, um pouco antes das homenagens pela história de cuidados com as pessoas da região, atualiza aspectos significativos de sua caminhada de vida.

Na concepção da obra de arte_cinema aparece uma diversidade de fenômenos, a superar a concepção discursiva original, como o caso das releituras de um público singular. Nesse sentido se destaca a autoria de obra aberta, a espera de preenchimento dos cenários inconclusos.

Bem depois das tentativas de fechar uma conclusão, o filme “Clube da luta” de David Fincher (EUA/Alemanha,1999), faz possível esse movimento desconstrutivo das certezas em prol de um imaginário incapaz de um ponto final. Uma realidade delirante (impregnada de lógicas desconhecidas) parece tomar conta da síntese narrativa, ao aprisionar em múltiplas visões o desenrolar dos eventos.

Um ponto onde ficção e realidade casam na sessão de cinema, derivando suas crias na forma de textos, novas ideias para o teatro, poesia, literatura. Aproxima-se de uma teia de armadilhas conceituais onde uma alimenta a outra. A retórica desse esboço mal_dito aproxima a perspectiva clínica das poéticas do delírio, da imaginação criativa, da invenção, da superação dos limites dos acordos sociais.

É improvável ser a obra “Dom Juan de Marco” de Francis Ford Coppola (EUA, 1995) um desses exemplares onde o mundo objetivo e a subjetividade dos envolvidos, do lado de lá da tela e do lado de cá da poltrona, se encontrem com alguma objetividade. Sugere um olhar sobre a sessão terapêutica onde, muitas vezes, os papéis existenciais podem ficar embaralhados. Também as ressonâncias dos encontros e agendamentos de lado a lado da interseção, permitem cogitar caminhos para além do texto de origem.

A partir daí as circunstâncias multiplicam entrelinhas de uma matriz que supera a busca inicial do filme. O fenômeno do encontro da clínica com o cinema parece não ter fim, mas recomeços, a perseguir o horizonte possível em cada subjetividade. Quem sabe sua vitalidade esteja relacionada com o ressurgir das cinzas, tão próprio da ficção, muitas vezes desconsiderada como ilusão ou erro, a contribuir, para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da vida.

“Blade Runner” de Ridley Scott (EUA, versão final do diretor 2007) consegue dizer sem palavras, a relação de um caçador de androides apaixonado por sua vítima. Em muitos instantes fica difícil saber quem é quem entre o fenômeno humano e desumano, suas cenas estão impregnadas da interseção muito íntima da realidade com a fantasia.

Nesse assédio de um pelo outro, encontros e desencontros elaboram versões inéditas, em busca por releituras a integrar razão e desrazão. Nesse endereço onde dramas, comédias, tragédias se integram a criatividade espectadora, a obra de arte pode ser recriada a todo instante.

Em “O pecado mora ao lado” de Billy Wilder (EUA, 1955), é possível vislumbrar a utopia dos desdobramentos subjetivos. Em alguns momentos o ator principal convida seus cúmplices de cena a participar de seus deslocamentos. Como um roteiro dentro do roteiro, vai abrindo janelas e dialogando com vários atores, inclusive com o ator_espectador diante da tela.

É possível notar a expansão dos limites do cinema para as ruas, praças, casas da cidade, ao influenciar o estilo de vestir, dialogar, caminhar, escolhas literárias, opção e formas de vida. No entanto, sua fonte de inspiração permanece indefinível, num caleidoscópio mutante a adaptar os diálogos entre as possibilidades de cada sujeito diante de si mesmo.

A obra “Poderosa Afrodite” de Woody Allen (EUA, 1995) é uma dessas poéticas narrativas que interfere no cotidiano das pessoas, desacostumadas aos discursos de tipo novo. Nela um pai procura a mãe legítima de seu filho adotivo. O que descobre modifica seu olhar, suas relações, o contexto dos envolvidos, a natureza dos agendamentos.

Um visar assim descrito, testemunha reciprocidades e passa a atuar nos limites da própria interpretação. Talvez como uma forma de dialogar com a matéria-prima contida na imprevisibilidade das coisas ao redor. Seus desdobramentos insinuam, convidam, instigam a um movimento de alma inédito, o qual aprecia compartilhar aprendizados no dia-a-dia dos envolvidos pela façanha cinema.

O processo de interseção entre duas singularidades, raramente é descrito com a aptidão de uma obra como “Livre para voar” de Paul Greengrass (Inglaterra, 1999). O impacto transformador na vida de um e de outro, a pluralidade discursiva, somática, concede uma pedagogia sobre o drama de uma ficção inacabada, um exercício de humanidade radical.

Nos enredos do cinema se multiplicam cenários que restariam desconsiderados não fora sua capacidade de inaugurar, a partir de um ambiente de sedução e magia, um aprendizado sobre as margens do que já se sabe. Apontamentos para um sentir além dos limites ideologizados, no convite sutil dos subtítulos da obra de arte.

Esse convite absurdo se realiza na sala escura, agregando ao sujeito, pela hora espetáculo, um fantástico rol de matéria-prima e ensaios. Entrar em cena pode significar a expansão das fronteiras pessoais em um só instante. O fora de foco de uma linguagem a reivindicar contornos intermináveis pelas releituras da mesma estória. Um sutil encantamento a transformar espectador em co-autor.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico

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