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Leituras de Filosofia Clínica IV*

Tive o grande prazer de ler a obra do prof. Dr. José Maurício de Carvalho (UFSJ) intitulada Filosofia Clínica, estudos de fundamentação. Trata-se de um vasto trabalho de conclusão de sua especialização em Filosofia Clínica. Após ler o livro que, além dos capítulos, apresenta várias resenhas de grande qualidade em anexo, seria uma vergonhosa pretensão me propor a fazer uma resenha dessa obra. Portanto, intento expor em poucas linhas uma impressão acerca de tão valorosa obra.

Carvalho apresenta seu livro em cinco capítulos e no fim acrescenta um apêndice com resenhas de nove obras de outros autores sobre Filosofia Clínica. No primeiro, nos trás a Filosofia Clínica em seus aspectos gerais, incluindo a exposição de cada tópico da Estrutura de Pensamento e todos os Submodos – os Exames Categoriais, como fundamentais para que o conteúdo seja totalmente contemplado, foram evidentemente apresentados. No segundo capítulo, trata da tese central de todo seu trabalho que é postular à Filosofia Clínica um aspecto predominantemente marcado pela fenomenologia.

Em seguida, desenvolve uma discussão entre fenomenologia, psiquiatria e as psicologias, com ampla citação de autores. Entretanto, enfatiza e centraliza nas obras de Jaspers. No quarto capítulo busca contribuir com a fundamentação teórica da Filosofia Clínica apresentando a filosofia de Ortega y Gasset. Na quinta parte trata de Filosofia Clínica e linguagem com a finalidade de mostrar que a Filosofia Clínica é menos filosofia da linguagem do que fenomenologia. Por fim, em apêndice, apresenta o supracitado conteúdo.

O ponto forte desse trabalho está na erudição e capacidade do prof. Dr. José Maurício de articular uma grande soma de pensadores. Além dos autores mais conhecidos no ambiente acadêmico no Brasil, que são os filósofos estrangeiros, o professor nos apresenta muito bem uma série de pensadores brasileiros, dos quais jamais ouvira falar em minha graduação.

Além de articular a ideia desse vários pensadores, ainda nos deixa como nota ao fim de cada capítulo uma breve biografia deles. Talvez este último aspecto seja um cuidado que a Filosofia Clínica nos lega tão bem ao postular a importância da historicidade na compreensão da pessoa e a intrínseca marca desta em suas ideias e modo de lidar com o mundo.

Ler essa obra nos remete a um grande curso. Diversos pensadores em diálogos fortes em suas diversas escolas e correntes de pensamento. Conteúdo que claramente poderia ser passado em um semestre inteiro de disciplina bem trabalhada. O texto será muito bem compreendido por quem acessá-lo, pois as ideias são expostas em linguagem bem acessível, sem perder a profundidade e a capacidade de articulação do conteúdo sofisticadamente.

Mas, não tive somente impressões positivas acerca desse trabalho. Se a proposta de toda grande exposição de um pensamento é ser difundida, discutida e colocada em questão, buscarei expor o que penso criticamente de modo sucinto.

A obra foi prefaciada por Lúcio Packter (criador da Filosofia Clínica) que além dos elogios relacionados ao conteúdo – o que podemos ver claramente ao ler a obra – também tece a seguinte crítica:

“No entendimento de Carvalho, o estruturalismo e a analítica de linguagem são elementos laterais à Filosofia Clínica se pensamos na contribuição fenomenológica. Opinião vigorosa que não encontra confirmação nos catedráticos que lhe ministraram os ensinamentos da clínica filosófica, a saber, Packter, Soares (indiretamente), Strassburger” (CARVALHO, 2005, p. 7. O sublinhado é meu).

Vemos que, além de Packter, Hélio Strassburger e Sebastião Soares, experientes professores e filósofos clínicos, não comungam inteiramente com a possibilidade da Filosofia Clínica ser predominantemente fenomenológica em detrimento das demais correntes filosóficas postuladas em nossos cursos como fundamentais na elaboração do método filosófico clínico.

Todo o livro é trabalhado a partir da ferrenha defesa de que a Filosofia Clínica é baseada e fundamentada na fenomenologia. Esta que inclusive, segundo Carvalho, é a base de leitura utilizada por Packter para ler toda história da filosofia, à qual este lançou mão para elaborar o método. Logo nas primeiras linhas da conclusão de sua obra, Carvalho diz:

“Trabalhamos com uma hipótese, a de que a fenomenologia existencial fornece, como método, o fundamento epistemológico para a filosofia clínica [...]. Contudo, como a fenomenologia existencial revela diferenças conceituais, indicamos o que destas reflexões nos parece válido para a filosofia clínica” (CARVALHO, 2005, p. 262).

Mesmo defendendo uma forte influência da fenomenologia ao longo do livro – acrescentado da possibilidade de enriquecimento a partir do raciovitalismo orteguiano (cap. 4) que, segundo o autor, também auxilia na compreensão do sujeito que procura a clínica filosófica – Carvalho, como bom pesquisador e coerente com o conteúdo que articula, reconhece que nem toda fenomenologia é válida para a Filosofia Clínica. Diante disso, a fenomenologia necessita de um reconhecimento do que parece válido para a clínica filosófica. E, em seguida, no término de sua conclusão, admite o caráter de utilidade do estruturalismo e da linguagem na atividade clínica. Embora estas não tenham, segundo ele, o caráter de sustentabilidade ou fundamento do método em questão. Veja o que o autor diz literalmente:

“A filosofia estruturalista e a análise da linguagem são úteis ao filósofo clínico? Entendemos que sim, embora não como elemento de sustentação ou fundamento. Essas teorias entram como complemento ao que a fenomenologia existencial considera ser a existência humana e a melhor forma de abordá-la” (CARVALHO, 2005, p. 273).

Quando em anexo, Carvalho apresenta resenhas de obras de outros autores sobre Filosofia Clínica, destacamos um comentário acerca do Compêndio de Filosofia Clínica de Margarida Nichele Paulo feito após a apresentação de seu conteúdo e elogiá-lo, com o levantamento da seguinte ressalva:

“O livro revela também aspectos que merecerão aprofundamento nos próximos tempos. Entre eles, parece-nos mais urgente elaborar melhor a discussão sobre os métodos empregados na filosofia clínica; também é um importante desafio fundamentar melhor os tópicos da EP e os vínculos que ligam o processo clínico com a tradição filosófica. A solução dessas questões abrirá caminho para o reconhecimento, aceitação da técnica e sua melhor divulgação” (CARVALHO, 2005, p. 280).

Embora o autor cobre um aprofundamento e desenvolvimento teórico que fundamente a Filosofia Clínica, penso ser mais urgente cobrar a aplicação mais próxima possível do método tal como foi pensado. E este, por sua vez, pede um dos elementos mais falados na própria fenomenologia: suspensão de juízo. Lúcio Packter mesmo chega a comentar nos Cadernos que teve que excluir determinados tópicos pela inviabilidade na prática.

O que nos remete ao pensamento de que é mais na prática que a Filosofia Clínica se constitui. Até poucos anos ela não era indicada para quem não tivesse raciocínio estruturado, como é o caso do paciente ou interno de hospital psiquiátrico, o que através da prática e pioneirismo de filósofos clínicos como Hélio Strassburger, acabou por se constituir como importante terapia num hospital psiquiátrico em Porto Alegre/RS.

Penso (não atribuindo à formação que me foi legada pelos professores Hélio Strassburger, Gustavo Bertoche e Silvana Agostini) que quanto mais teoria e fundamentação, mais pré-juízos por parte do filósofo clínico na recepção do partilhante. Compreender e estudar os filósofos, a meu ver, é mais imprescindível e constitui-se um imperativo para ampliar os horizontes do filósofo que vai “estudar” aquele que aparece no consultório pedindo ajuda, do que proporcionará possibilidades de “diagnósticos” ou capacidade de “interpretar” o partilhante. O que não é o mesmo que dizer que o filósofo clínico precisa lançar mão dos filósofos para melhor fundamentar ou aprofundar nos pressupostos teóricos da Filosofia Clínica.

O que caracteriza e defende a Filosofia Clínica é a influência de correntes filosóficas na elaboração de seu método, e não o fato dessas correntes serem efetivadas na prática clínica. Em si, as correntes não servem para a prática da Filosofia Clínica tal como está estabelecida. Não somente a filosofia da linguagem e outras correntes seriam falhas, mas inclusive a fenomenologia, tal como Carvalho defende, pode ser considerada em si na aplicação da clínica.

Quando Lúcio lançou mão das leituras dos filósofos, aproveitou o que neles encontrou de útil para elaboração de seu método que em si é uma filosofia. Filosofia Clínica não é a fenomenologia aplicada à clínica. Filosofia Clínica é ela mesma e seus pressupostos para a atividade terapêutica proposta – aqui já não penso a formulação usual que diz que a Filosofia Clínica é a filosofia acadêmica aplicada à clínica, pois penso que ela poderia gerar uma compreensão limitada do método.

Toda e qualquer elaboração externa ou método pode levar o filósofo clínico a carregar mais pré-juízos para o trabalho com o partilhante do que torná-lo, na medida do possível, aberto para exercer seu trabalho em consultório. Se há algo que aprendo cada vez que mergulho nos estudos da Filosofia Clínica, esse algo é a abertura e ausência (na medida do possível) de teorias prévias, ou pré-concepções acerca do partilhante.

O método é eficaz quanto mais aberto for para que o partilhante o preencha de modo a ser compreendido a partir de si. O fundamento último da Filosofia Clínica não é dado pelas obras lidas por Lúcio ao longo da elaboração do método, mas como ele mesmo concebeu esse método. Isso não torna, entretanto, prescindível a leitura dos textos de modo algum.

Em outro texto (O que faz daFilosofia Clínica, filosofia?) postulei que a filosofia heideggeriana, por exemplo, não é fundamentada por Rickert, Scotus, Husserl, Aristóteles, Kierkegaard ou qualquer outro. Estes serviram para pesquisa e vários conceitos foram aproveitados. Entretanto, todos foram ressignificados para aplicação no sistema de pensamento do próprio Heidegger. Querer compreender as influências de Heidegger não significa compreender sua filosofia.

Entender Lúcio Packter ou a Filosofia Clínica (que hoje recebe contribuições de diversos filósofos clínicos em atividade atualmente), assim como entender Heidegger, exige aprofundar naquilo que ele pensa e expressa. Suas influências são somente referenciais. Talvez o que constitui um grande paradoxo ao atribuir a leitura que Packter fez dos filósofos seja fenomenológica, seja que se em Filosofia Clínica quem nos ensina como a pessoa “funciona” seja o próprio partilhante, e Lúcio diz que não foi do modo como Carvalho atribui, inferir algo contrário à própria compreensão da pessoa acerca de si seja um erro metodológico.

O fato de haver mais proximidade com a fenomenologia do que com outras correntes filosóficas as considerações de Lúcio não significam que a fenomenologia seja ou sirva de fundamentação predominante. Somente significa que haja mais proximidade ou identificação, nada mais. A proximidade – e mesmo se fossem semelhanças – de visões filosóficas pode claramente fazer lembrar o exemplo no qual Leibniz e Newton chegaram à mesma conclusão de uma fórmula matemática chamada “teorema fundamental de cálculos” utilizando seus próprios métodos (caminhos), sem que um soubesse do caminho ou pesquisas do outro. Com isso não quero dizer que a metodologia e fundamentação da Filosofia Clínica seja intrinsecamente fenomenológica, mas apenas mostrar que se há possibilidade de ser defensável, não há motivos para tal se o fundador da prática não o confirma.

Diversas opiniões podem ser geradas a partir da leitura de Filosofia Clínica, estudos de fundamentação. Do mesmo modo como pude aproveitar bastante a grande aula que essa obra me proporcionou ao mesmo tempo em que me levou a levantar pontos de vista contrários ao do autor, recomendo a leitura. Segundo meus pré-juízos, somente bons livros são capazes de despertar o fascínio e o espanto, no meu caso, o crítico, diante de seu texto. Possa a leitura desse livro, despertar em você também novas impressões. Não vou me estender em maiores considerações devido ao espaço.

Diante disso, concluo que a necessidade de fundamentos e a ênfase na fenomenologia é um traço do autor, fruto de suas vivências, visão de mundo entre tantos outros fatores. Fatores também que me levam a defender o aprofundamento na Filosofia Clínica tal como foi pensada a partir dos estudos empreendidos por Lúcio Packter.

A riqueza da Filosofia Clínica está no fato de ser uma obra aberta, como toda boa filosofia, disposta a ser lapidada a cada contribuição dos que se propõe a pensá-la e atuar a partir dela. Em outras palavras, seja no âmbito teórico, seja no prático, a Filosofia Clínica tem como principal riqueza o fato de permanecer a mesma para todos, ainda que diante de paradoxais pontos de vista. E você, como pensa, vivencia ou pratica a Filosofia Clínica?
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Bibliografia:

CARVALHO, José Maurício de. Filosofia Clínica, estudos de fundamentação. São João del-Rei: UFSJ, 2005.

*MiguelAngelo Caruzo
Filósofo Clínico
Juiz de Fora/MG

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