Pular para o conteúdo principal
O que pode ser*

Nas expressões das verdades interiores (de cada ser pensante) que nos atropelam por aí, quantas vezes não nos pegamos pensando sobre a vontade que dá de, inadvertidamente, dizer também o que pensamos ou sentimos ou as duas coisas, a partir de nossas próprias perspectivas, sobre elas.

Diante de tais situações que vão despencando, aqui e ali, pode ser que baste um olhar mais atento a nossa volta para entender que verdades são incontestáveis, uma vez que cada um tem a sua – e certamente a receita jamais se repete – a forma provavelmente é lançada na fogueira a cada criação, e os desígnios são apenas as assimilações de como a vida um dia se projetou para cada um, pautada tão somente em textos e contextos para lá de subjetivos. Porque, afinal, origens e fins acontecem todos os dias!

Só podemos então falar por nós mesmos... e ainda assim esta fala já não será mais a mesma coisa infinitésimos de segundos depois. Até a imagem que selecionamos e captamos já não é a mesma ao ser refletida em nosso olhar. Nada é estático, nada permanece, nada se engessa... podemos apenas supor o que pode ser. Ou o que desejamos que seja!

Que possa a jornada ser uma reflexão, eterna a todos que se dispuserem a tal, mas ainda assim, mesmo para estes, que não sejam concedidos limites, se assim o desejarem. Que esta não se paute em regras inóspitas e inúteis, como se conhecimento fosse um decreto e como se leis alheias e desavisadas orientassem o sagrado movimento de dedos a folhear entremeios de novas perspectivas.

Que horizontes possam ser vastos, na medida em que a axiologia de cada momento o permitir e que os caros juízos não consigam interferir e até se calem por breves instantes, pois para alçar voos será preciso soltar grilhões, fazer concessões, abrir fossos e aquietar mentes.

Que se busquem simples ou complexas verdades, se estas importarem à percepção do juízo de valor de cada um e que sejam adicionadas se ainda continuar a valer a pena... a vida é mutante, assim como os pensamentos e os sentimentos que a organizam, e o que tanto valia ontem pode nada mais significar presente ou futuro próximo, afinal muito muda no decorrer do caminho e novas e inusitadas verdades se revelem aos olhos, especialmente àqueles que nunca se fecham.

Que encontros afins aconteçam, e que sejam infinitos em suas emanações e de todas as formas e naturezas, para que atendam às demandas fluídicas, afetivas, racionais de cada êxtase de alma. Mas que os diversos e incoerentes também partilhem a beleza da diversidade de suas entranhas e nos façam entender que nem sempre apenas os semelhantes se atraem.

Que alegrias e tristezas transformem rostos que a imobilidade condenou, pois que não há nada mais insípido que alguém que não sofreu por amor ou por qualquer outra coisa, que não sorriu ou chorou, que não lutou ou não se martirizou, mesmo que por inutilidades suspensas. Àqueles que não podem fazer transparecer, que seu coração se agite, ainda que por uma rala camada de algo que nem mesmo possa ser identificado. E que a insanidade a todos instigue e persiga, para que não esqueçam de que os pés resvalam entre os tênues limites das margens existenciais e se lembrem de que correr riscos às vezes vale a pena.

Que o encanto de perceber nuances nos envolva e nos conceda o que há de mais essencial, de tudo que se desdobra da fonte que jorra do âmago de seres que se permitem olhar através da penumbra vaga que esconde prazeres e sonhos, dores e devaneios. Pois pela poesia as comportas se abrem como vazadouros impossíveis de serem contidos. Assim reinventamos o que ainda não se vislumbrou ou que não foi revelado e seres encantados se revelam, comunicando o que jamais seria possível sem a extrema beleza da sensibilidade.

Que nos seja possível aceitar as crenças ou a ausência delas e que, neste limiar, não haja debates vãos que não conseguem se dar conta da profundidade de seus próprios receios, alguns a tal ponto de não perceber que muitos deles são tão rasos que os pés facilmente tocariam o chão e, assim, poderiam se salvar pela simples calma de seus domínios agitados.

Pois talvez sejamos como náufragos nos debatendo no oceano solitário em que insistimos em mergulhar. Porque o que quer que haja nos limites de qualquer imaginável dimensão, de fato já o é... ou, se não for, não o será por decisão ou perspectiva de quem quer que seja, o que nos dá a liberdade de trânsito entre ideias e sentimentos, desde que se entenda que está estabelecido que esta liberdade valha para todos. E, consequentemente, respeito idem!

Que a liberdade caminhe silenciosa pelas matas densas das surpresas inseridas em cada raiz que se planta e se ramifica. E que não se esconda ou não seja tolhida, para que não se perca uma só folha e para que suas sementes sejam espalhadas ao vento imprevisível da vontade de realmente ser.

Então, enquanto a vida segue seu rumo independente, solitariamente nos adaptamos ao nosso aquário existencial como habitantes indecisos de nosso papel, apenas exercendo o direito – concedido pela dádiva da vida, entendida como convier, vinda de onde vier, alcançando seja lá o que for – de expressão, de busca e de recolhimento, de transcendência e de luta, de gritos e ausências, de amor e perversidade, de sim e de não, de luz e do que ofusca, de trevas e do que apenas não se deixa revelar.

Enfim, direitos de ser ou de não ser... pouco importa, pois que a revelação dos porquês sempre será algo a investigar, algo que estará além da compreensão... e além é justamente seu lugar, para que nunca realmente a alcancemos, pois que olhar pela fresta da indefinição é o que nos aguça a certeza de que sempre seremos.

*Luana Tavares
Filósofa Clínica
Niterói/RJ

Comentários

Visitas