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O que vale a pena*

“O mais absurdo é o encontro entre o irracional e o desejo desvairado de clareza cujo apelo ressoa no mais profundo do homem”.
(Albert Camus)

Pode ser tudo ou nada... ou o que há poucos instantes não possuía significado algum e ainda navegava impreciso no âmbito da subjetividade indecisa de seus anseios. Quem sabe limitada aos devaneios ineficazes em criar compor melodias de embriaguez, como Dioniso a espreitar seu próprio delírio. Pode ser até o que nem sequer se suspeita

Talvez o que valha a pena seja o que faça com que algo ou alguém nos permita olhares singulares – mais profundos, mais densos, mais translúcidos – e que surpreendem até a quem os carregam. Olhares que fascinam, encantam e se tornam especiais sem maiores dizeres ou até sentires.

É ficar em êxtase simplesmente pela existência ou pela constatação de que amanhãs são possíveis. E ainda que não o sejam, que algo da nossa essência se perpetue, como um legado a transcender o que possa valer para a alma.

É o transpor de realidades vãs que não comportam o perseguido e indulgente estado do nirvana, onde as almas se perdem em vazios que libertam e absorvem plenitude, mas que excluem as multiplicidades que colorem a instabilidade e a busca. E que também congelam a instigante característica de básica humanidade: a que permite saborear o que ainda não foi concedido, porque não chegou o momento... porque ainda não é válido conceder.

O que se revela como essencial a tudo o que o instante traduz, completando o vazio que não se explica e recriando a distância que separa o que instiga e incomoda da complacência do espírito, inserindo reticências necessárias ao aos preceitos indizíveis do pensamento.

Ou o que seduz, tal como o reflexo de tudo o que apenas desejamos revelar e reconhecer em nós mesmos, como um espelho difuso que reflete fantasias ocasionais de um sonho ainda por despertar.

Compreender o que somos a partir de tudo o que pode ser tenuemente vislumbrado, na medida elementar para apenas nos sentirmos confortáveis em nosso próprio reduto, como referências para sensações e afinidades, trocas e prazeres intencionados.

Vale a pena quando um ínfimo grão é capaz de deslocar a órbita da engessada zona de conforto existencial, revirando tudo o que supostamente banaliza a vida, lançando-a em turbilhões emocionais passíveis de movimentar além de céus e infernos ou de mundos possíveis, com passagens secretas para a ilusão virtual... na tentativa de desbravar as portas fechadas que a ignorância e o torpor insistem em convencer.

Enfim, pode ser tudo o que nos incita a querer o que vai além do sombrio vale da inércia instaurada em geografias que nem mesmo são percebidas... em mares onde cantos de sereias inebriam e horizontes que nunca se revelam.

Porque transformar pedras em pétalas por caminhos escorregadios não é tarefa para heróis ou seres mágicos, mas para quem ainda acredita na própria divindade, na autocondição de que vale realmente a pena levantar o olhar e buscar ar onde tudo sufoca. Porque inspirar a vida é função para quem existe, para quem se atropela, mergulha fundo e vaza limites... é para quem sonha!

Mesmo sabendo que, às vezes, é preciso deixar o tempo passar... para que a coragem desista de se ocultar ou a insanidade se aproxime. Porque viver é se revestir do que importa, do que transgride e do que ultrapassa, do que confere vitalidade ao grão, ainda que de forma insana e absurda. Ou porque viver, além de tudo o que possa ser sentido, é fazer valer o que pulsa, o que vibra, o que apaixona.

*Luana Tavares
Filósofa Clínica
Niterói/RJ

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