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Começo, meio e fim*

Quando entrei na escola pensava que escrever era fácil. Tudo o que precisava era começar o texto com letra maiúscula e terminar com um ponto final. No meio colocava as idéias. Mais tarde aprendi que para tirar uma boa nota em redação, esta precisava ter começo, meio e fim. Não sei como, mas este conceito de que as coisas precisam ter um inicio e um encerramento bem definidos têm acompanhado e confundido a vida de muita gente.

“Aos 14 anos de idade fui oficialmente pedida em namoro por um menino. Era uma noite de verão e depois do jantar, enquanto jogava conversa fora com os amigos, o Dudu me chamou num canto e fez o pedido de namoro. Quando voltei pra casa, na hora de dormir, já havia trocado de "status". Ainda não existia o Facebook para que pudesse postar e anunciar para o mundo, mas de um momento pra outro, minha vida mudara, como se estivesse publicamente tomando posse de um cargo e iniciando naquele dia e naquela hora a nova relação. Uma separação muito clara entre o antes e o depois do pedido.”

Enamorar-se de uma pessoa é um processo que vai acontecendo aos poucos. Com o tempo e o convívio, vão surgindo a intimidade, a admiração e o casal, dia após dia, vai se reconhecendo como amigos, confidentes, amantes, cúmplices. Roupas e discos começam a se misturar, precisam urgentemente contar uma coisa para o outro, já não querem mais dormir separados.

Tornar-se namorado ou namorada também deveria ser assim, sem um marco inicial, um pedido formal, um ritual divisor de águas. Espontaneamente descobrir-se envolvido, a ponto de sentir que as duas vidas estão andando juntas e que a parceria está formada.

“Qual a data de nosso casamento? 12 de março, 29 de março, 10 de novembro...Em cada dia de nossos cinco anos de namoro, casamos um pouquinho. O que equivale a dizer que começamos a casar no dia que nos conhecemos.” O amor não tem que ser uma história com princípio, meio e fim. (Fábio Jr.).

O término de um relacionamento também não acontece em uma data fixa. O dia em que o casal separa fisicamente, quase nunca coincide com a separação emocional. Existe uma intimidade que vai além dos corpos e que precisa ser resolvida. É comum acontecer uma separação de corpos, mas não de almas e talvez mais comum ainda, ver que almas já não se encontram enquanto corpos ainda se tocam, em uma tentativa de resgatar o que ficou perdido em algum ponto da jornada, ou apenas para satisfazer uma necessidade física. Os termos do divórcio assinados em cartório são apenas outra formalidade na letra da lei. É muito difícil precisar quando se deixou de gostar, admirar e investir na relação.

Quando o assunto é sentimento, imagino que sempre tenha um começo, mas sem precisão de data. Também acho que tem meio. O fim só existe para quem não percebe a grandeza do meio e o ciclo infinito dos recomeços e aprendizados. O fim de um romance sempre é o começo de uma nova história.

Dizem que a lua crescente aparece todos os meses, em forma de vírgula, para lembrar que não devemos colocar ponto final nas histórias, mas sim uma vírgula. Aliás, perceberam que quando se coloca vários pontos finais seguidos, estes se transformam em reticências?

Ainda hoje escrevo redações. Continuo começando com letra maiúscula, mas não me preocupo mais nem com a métrica nem com a nota. Às vezes, como agora, o final se confunde com o inicio. Não importa, a história é que precisa ser boa e ter conteúdo.

Quando as palavras ficam sem graça, não fazem sentido ou falta inspiração, sempre existe a possibilidade de recomeçar, corrigir e acertar nos próximos parágrafos. Assim vou escrevendo minha vida, sem começo ou final definidos, mas com vontade e esperança de estar no caminho certo.

*Ildo Meyer
Médico, escritor, palestrante, filósofo clínico
Porto Alegre/RS
**Artigo escrito em parceria com Claudia Marques.

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