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A Filosofia da Criança*

A observação é realmente algo bom para se começar um estudo. Antropologicamente falando, a observação de nós homens é boa para termos idéia de costumes locais, crenças, culturas e outras coisas mais. Filosoficamente falando, podemos compreender os sistemas éticos e morais e que nos cercam e nos formam. Mas observando, ainda sob o olhar filosófico, uma outra população formada por gente miúda, as crianças mesmo, podemos ter uma idéia muito boa sobre nós mesmos e sobre nossos sistemas políticos etc..

As crianças são extremamente sinceras e estão sempre prontas a “jogar” sua sinceridade na nossa cara. Não me canso de pensar que elas são o retrato mais puro do que há dentro de nós mesmos e nós nem nos damos conta do quão verdadeiro isso pode ser. Por exemplo: quando aprendemos a dividir? A criança não divide, é dela e ponto! Ela luta pelo que entende ser bom e seu, somente seu. Já tentaram tirar um brinquedo da mão de uma criança? Ela não deixa! Faz uma força incrível para continuar com o brinquedo.

E quando dizemos que não pode bater no coleguinha que está querendo brincar com o carrinho dela porque o carrinho é dela, o que ela faz? Chora, grita, esperneia e não aceita o empréstimo, voando no pescoço do colega que tentou pegar seu carrinho! Pois é... esse sentimento de posse é totalmente intrínseco a nós mesmos e a criança nos prova isso sempre que tentamos pegar algo dela, mesmo que seja apenas emprestado e que daqui a dois minutos devolvamos.

Mas esse não é o único sentimento que ela traz dentro de si e mostra com tanta desenvoltura sem se preocupar com julgamentos externos sobre o comportamento dela perante a sociedade e à própria família. Há uma música do Natiruts chamada Quem Planta Preconceito com o seguinte trecho: “Crianças não nascem más/crianças não nascem racistas/aprendem o que a gente ensina”. Isso não é verdade. Isso vem daquela velha máxima que sempre ouvimos por aí e continuaremos a ouvir de que as crianças não puras. Mentira! Crianças nascem más, tão más que nós é que precisamos ensiná-las a não serem assim. Claro que com isso, ensinamos os preconceitos e racismos também. Mas quero chamar a atenção para o fato de que não podemos dizer que elas são “anjinhos” e que nós as transformamos em “monstros”. Elas sempre foram monstros e apenas deixam isso transparecer sem nenhum pudor ou constrangimento, é só observarmos quando elas vão crescendo sem nenhum tipo de regra.

Os sentimentos que achamos incompatíveis com a vida em sociedade afloram de tal maneira que elas se transformam em adolescentes sem respeito algum pelos pais, irmãos, tios, primos, amigos, enfim por quem cruzar seu caminho. Por quê? Porque elas querem fazer valer os seus direitos de ser exatamente aquilo que são, sem que precisem se esconder. As regras morais e sociais existem para dar conta não somente da vida em sociedade, mas também desses adultos que se criaram sem que houvesse um mínimo de respeito pelos que estão a sua volta, para dar conta da vida.

Observando, podemos perceber que aquilo que Hobbes coloca de que o homem é mal por natureza é totalmente verdade no âmbito das crianças. Elas têm no seu íntimo uma vontade de que tudo seja do jeito que ela quer muito forte e somos nós que falamos para elas que nem tudo deve ser como elas querem. O estado de natureza hobbesiano é instaurado na criança e em suas vontades: para brincar com a boneca da coleguinha, ela bate, morde, puxa o cabelo da outra até conseguir. Mas essa “luta” só acontece porque a coleguinha não quer e nem vai largar a boneca que não lhe pertence, mas ela a quer. A criança é egoísta, possessiva, materialista, não é submissa, e se pararmos para analisar bem, veremos que esses sentimentos continuam presentes em toda as fases de crescimento da criança até chegarmos à fase adulta.

Esses sentimentos nos acompanham por toda a vida e é por causa deles que modificamos a nossa postura em favor de uma união em sociedade. Não poderíamos conviver uns com os outros sem nos estapearmos por causa dos nossos objetivos e desejos particulares que na grande maioria das vezes não é a vontade geral de um determinado grupo ao qual pertencemos. Faltou dizer também que a criança é bastante interesseira.

Basta usarmos uma experiência simples com reforço positivo: se fizerem o que queremos, ganham algo em troca. Por exemplo: você tem dois filhos com diferença de dois anos (não que essa diferença seja uma regra, é apenas para constar como exemplo). Um tem um carrinho azul e o outro vermelho. O do carrinho azul quer brincar com os dois, pois o do carrinho vermelho está brincando com bonecos. O dono do carrinho vermelho não vai gostar de ver seu irmão “pegando algo que não lhe pertence” e vai tentar tomar da mão do irmão.

Mas você é esperto e sabe que ele gosta muito de chocolate. Então você diz a ele: filho, se você deixar seu irmão brincar com seu carrinho vou te dar um chocolate. Pronto! Já conseguiu fazer com que ele deixe o irmão brincar. E viva o interesse! Agora, imagina o que não fazemos por fama, reconhecimento, dinheiro e outras coisas que achamos importantes para inflar nosso ego?

Assim, observando melhor o comportamento de nossas crianças podemos entender exatamente aquilo que se passa conosco e podemos entender porque agimos de determinada forma perante as situações que se nos apresentam. É claro que temos que levar em conta também que elas às vezes nos surpreendem com algum carinho ou qualquer coisa da qual nos vemos impressionados e extremamente babões por essa gente miúda.

Conforme nos tornamos adultos fazemos coisas parecidas, mas na maioria das vezes há algo pouco espontâneo e mais de interesse do que qualquer outra coisa. Mas essas pequenas demonstrações de carinho e afeto são importantes para que possamos continuar nos envolvendo e organizando em sociedades e fazendo bem aos nossos corações que não conseguem viver sem ter sequer um amigo.

*Vinicius Gomes de Fontes
Filósofo, estudante de Filosofia Clínica
Rio de Janeiro/RJ

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