Prefácio para o livro
Não, de Augusto de Campos*
O filósofo Ludwig Wittgenstein (que comparece neste livro intraduzido em om / e. e. wittgenstein) dedicou toda sua obra à reflexão sobre os limites da linguagem. É famosa a asserção com que ele encerra o seu Tratactus Logico-Philosophicus: “O que não se pode falar, deve-se calar”.
No extremo mais extremo
dessa (im)possibilidade, para onde a filosofia ou a fala de todo dia apenas
apontam, sem alcançar, emerge a linguagem-coisa de Augusto de Campos.
Entre falar e calar,
seus poemas parecem dizer o indizível, por não tentar dizê-lo, mas realizá-lo
através da linguagem.
Dessa condição
limítrofe surgem as marcas de negação que vêm caracterizando sua poesia há
muitos anos — poetamenos, expoemas, despoesia, o afazer de afasia, o vácuo o
vazio o branco, o oco, a canção sem voz, poesia sem placebo, semsaída,
nãopoemas, não.
Tais sinais de menos
adquirem positividade na medida em que os poemas se efetivam; minérios
extraídos de recusas a todos os excessos e facilidades.
O que sobra depois de
subtrair tanto? Que sumo essência medula “osso/sos”? Augusto não responde,
mostra. Como em não, que dá título a este volume, poema feito do dizer o que
não é poesia, numa sequência de pequenos quadrados brancos nas páginas negras,
que vão pouco a pouco rarefazendo as colunas verticais do texto até o limite
vertebral da única linha “oesia”.
Como também em
semsaída, estampado na contra-capa, que toma o mote mais repetido pelos
antagonistas da poesia concreta (que ela teria levado a poesia a um “beco sem
saída”, expressão também citada/brindada em desplacebo), positivando seu
sentido, afirmando a potência do desafio ante o impossível.
semsaída lembra
tudoestádito (1974), pelo que diz, assim como pela forma de decifração que
impõe para que se chegue ao que diz. E também pela livre disposição das frases,
que podem ser lidas em diferentes ordens.
Em tudoestádito esse caráter lúdico se evidenciava especialmente na versão da Caixa Preta, de Julio Plaza e Augusto (1975), onde o poema vinha impresso em seis folhas permutáveis. semsaída convida ao jogo misturando as frases num labirinto, onde se pode entrar a partir de diferentes direções.
Em tudoestádito esse caráter lúdico se evidenciava especialmente na versão da Caixa Preta, de Julio Plaza e Augusto (1975), onde o poema vinha impresso em seis folhas permutáveis. semsaída convida ao jogo misturando as frases num labirinto, onde se pode entrar a partir de diferentes direções.
Reverberações como essa
são comuns no trabalho de Augusto de Campos — poemas que parecem comentar, ou
completar, com intervalos de anos, uns aos outros. Podemos lembrar os versos da
contra-capa de Despoesia (1994) — “a flor flore / a aranha tece / o poeta
poeta” — ao ler “a cor / cora / a flor / flora / o ir / vai / o rir / rói / o
amor / mói / o céu / cai / a dor / dói”, em ferida (2001), onde a obviedade se converte
em estranhamento. Ou associar não (1990) a poesia (1998) — “nãoéphila /
telianãoé / philantro / pianãoéph / ilosophia / nãoéegoph / iliaésome /
ntepoesia”, onde sobressai semanticamente o “some” que encerra a penúltima
linha. E espelho (1993) a desespelho (2000), que gira em torno do “o” central
(o “espelho” dentro e fora do “olho”), assim como ruído (1993), que por sua vez
remete a omesmosom (1989/1992).
O próprio formato
quadrado de NÃO dialoga com Despoesia, assim como sua estrutura, dividida em duas
seções de poemas, uma de profilogramas e uma de intraduções.
Se por um lado tais
recorrências denotam uma trajetória de coerência e fidelidade a um projeto
estético, por outro, a poesia de Augusto de Campos se caracteriza pela busca
incessante de novas soluções formais — nas diferentes possibilidades de
fragmentação da linguagem; na inauguração de sistemas de leitura, onde o linear
se abre ao prismático; nos signos dentro de signos, onde várias alternativas
disputam, pelos cortes ou junções, o mesmo espaço sintático (“sub/ir” em
“subir” — paradoxo de uma só palavra —, “pulsa” em “ex/pulsa”, “ruído” em
“dest/ruído”, “alenta” em “rapid/alenta/mente”, etc.); na exploração constante
dos procedimentos gráficos (o uso cada vez mais apurado da cor, disposição e
escolha de tipos, que se relacionam isomorficamente com os sentidos dos poemas
e ao mesmo tempo inserem obstáculos de leitura que são incorporados à sua
recepção), usados de forma estrutural e não decorativa.
Como se a cada passo
conquistado fosse preciso buscar outro andar, sem repouso (“fujo de mim / e
assisto a minha fuga”, diz em “rapidalentamente”), cada descoberta formal
alimenta o anseio de correr o risco atrás de outro processo, outro limite,
outra sensibilidade.
É natural portanto que
Augusto busque no repertório de recursos digitais novas instigações para sua
expressão apur(depur)ada, procurando respostas de linguagem que façam usos
procedentes desses meios, raramente integrados de forma tão coesa à criação
poética.
Se os frutos desse
embate já ampliam as possibilidades gráficas do próprio livro, no CD-rom que o
acompanha podemos apreciar ainda mais plenamente seus resultados. Nele
encontramos versões animadas e sonorizadas que redimensionam poemas já
existentes, como caracol, cidadecitycité, rever, entre outros, e criações
feitas especialmente para os recursos que as sustentam, como os morfogramas, os
interpoemas e outros como criptocardiograma e semsaída, que, além da já
admirável inserção de movimento na palavra escrita, somada à sua ocorrência sonora,
incorporam ainda o aspecto da interatividade com o receptor.
Se a poesia concreta,
com sua dimensão verbivocovisual, já indicava experiências de linguagem
avançadas para os meios da época (a sugestão de movimento já aparecia, por
exemplo, pela composição tipológica de poemas como velocidade, de Ronaldo
Azeredo, ou infin, de Augusto, ou pela sequência gráfica de várias páginas como
em seus cicatristeza ou oeilfeujeu, assim como no organismo, de Décio
Pignatari; o aspecto interativo também era já prenunciado em poema-objetos como
linguaviagem e tudoestádito, da Caixa Preta), os recursos digitais parecem
agora idealmente adequados ao seu espírito de invenção. Ao explorar suas
virtualidades nesses clip-poemas, Augusto de Campos demonstra continuar desbravando
novos territórios de linguagem, com inquietude determinada, cinquenta anos
depois da formação do grupo noigandres.
Do menos ao ex, do ex
ao des, do des ao não, a poesia de Augusto renova sua afirmação.
*Arnaldo Antunes
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