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A levitação de Clarice***


            Um dia Clarice liga dizendo que aceitou dar um depoimento no Museu da Imagem e do Som, mas fazia questão que Marina e eu fôssemos os entrevistadores. Eu a conheci em 1962 quando ela foi a Belo Horizonte lançar A maçã no escuro, na livraria Francisco Alves, e o gerente da livraria o professor Neif Safady convidou-me, eu ainda estudante de Letras, para fazer uma espécie de discurso de apresentação dela. 

Lembro-me da primeira visão que tive daquela linda e consistente mulher no hall do Hotel Normandy. Estranhamente, tinha só meia dúzia de pessoas no lançamento. Depois disto fomos jantar num restaurante chinês e me lembro de que Ivan Ângelo estava conosco. E como seguíssemos durante a sobremesa falando de A maçã no escuro o garçom nos interrompeu constrangido explicando que a  maçã estava meio escura, mas não estava estragada.

            O convite para aquela entrevista no MIS, que ocorreu um ano antes de sua morte, era um pacto de amizade. Essa relação afetiva já havia sido demonstrada quando ela dedicou “A galinha Laura” a nossa filha Fabiana. Clarice sabia que nós não a ameaçávamos, antes a protegíamos. O que ela estava pedindo era abrigo e compreensão para se abrir. E foi tudo natural. 

Não quisemos fazer uma entrevista acadêmica, pedante, “inteligente”, mas criar um ambiente em que ela se sentisse à vontade. E ela estava particularmente feliz naquele dia, sorrindo várias vezes. Atendíamos ao pedido da amiga sem pensar que essa entrevista, hoje traduzida e amplamente divulgada, seria uma peça rara e fundamental ao entendimento de   sua extraordinária obra.

            Se eu tivesse um diário e paciência para anotar, quanta coisa, quanta conversa, piada e brincadeira teria salvo do oblívio. Mas posso me lembrar do interesse dela quando soube que tínhamos uma cartomante incrível lá no Méier. Tanto Clarice fez que a fomos buscar no seu apartamento uma manhã e a levamos à dona Nadir. Resultado: dona Nadir entrou para a história da literatura brasileira, virou Fernanda Montenegro, a cartomante de A hora da estrela. Clarice ficou freguesa de dona Nadir.

            A meu convite ela foi várias vezes à PUC-RJ quando dirigi o Departamento de Letras e Artes. Tenho aqui as fotos dela assistindo a alguns dos desafiadores encontros nacionais de professores de literatura que organizamos nos anos 70. Lembro-me daquele em que Luiz Costa Lima e José Guilherme Merquior debatiam trocando hermetismos teóricos, quando Clarice, de repente, levantou-se e foi embora. Fiquei preocupado. Nélida a acompanhou. Telefonei-lhe depois. E ela: “Aquela discussão incompreensível foi me dando uma fome que cheguei em casa e comi um frango inteiro.”

            Na PUC, quando lá dirigi o Departamento de Letras e organizei um curso de criação literária, Clarice foi e falou sobre sua obra. Imperdoável não se ter gravado seu depoimento. Era um clima tenso, especial. Os alunos, temerosos de perguntar, como se ela fosse sangrar a cada pergunta. E sangrava mesmo. Ou, então, ria, como ocorreu num curso sobre ela dado pelo prof. Amarylis Hill em que estavam todos tantalizados sem saber o que lhe dizer, e eu então, para quebrar o gelo, perguntei: “Clarice, você acha que 2 e 2 são 4?” (Naquele tempo cantava-se com Gal “tudo certo como 2 e 2 são cinco”, e era ditadura). 

         Sorrindo, ela disse que aquilo lembrava a piada sobre qual era a diferença entre o neurótico e o psicótico. O psicótico, que já extrapolou a realidade, diz: 2 + 2 são 5. O neurótico diz 2+2 são 4, mas eu não aguento.

            Já contei, Marina já contou, que um dia ela nos cobrou que não a convidávamos para jantar. Não o fazíamos por pudor. Mas tendo ela manifestado o desejo armamos um jantar onde ela escolheria todos os convidados. Até o horário era cedo, como ela queria. Fui buscá-la em sua casa. Pois ela chegou, viu aqueles amigos todos, mas daí a uns 15 minutos fez um pedido que era uma ordem: “Quero ir embora.” Levei-a de volta à sua solidão. E os amigos compreenderam.

            Fui visitá-la em seus últimos dias naquele hospital da Lagoa. Olga Borelli que a acompanhava disse que ela não permitia que homens a visitassem ali, eu era exceção. Fiquei ao lado de seu leito tentando uma leveza impossível.

            Otto Lara tinha razão. Com Clarice ocorre o fenômeno de possessão. Quem se aproxima de sua obra é devorado por ela. Quando dirigi a Biblioteca Nacional e minha ex-aluna Ester Schwarz pediu para reunir lá a Sociedade das Amigas de Clarice, concordei. Ali, umas 30 clariceanas. Quando minha chefe de gabinete passou por elas, sentiu que havia  em suspensão algo estranho. Veio à minha mesa, e disse: “O que é aquilo? O clube do lexotan?”

            Ela tinha captado o clima. Leitores de Clarice vivem em outra dimensão. E sou capaz de reconhecer uma leitora de Clarice a cinqüenta metros de distância, porque, como Clarice, ela não anda, vive em denso estado de levitação.

*Affonso Romano de Sant’Anna
**Clarice Lispector

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