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Dos retratos existenciais*


Certamente você conhece alguma pessoa com quem não tem contato há 2 meses, 2 anos ou 2 décadas. É um familiar que mudou de cidade porque constituiu família, ou um amigo que foi promovido no emprego e teve que mudar também de cidade, uma amiga que foi para o exterior fazer um intercâmbio de estudos. Na hipótese de um reencontro, você conversa com a pessoa, percebe algumas mudanças e logo passa à sua cabeça "nossa, como o fulano mudou!". Isso pode ser um indicativo de que você fez um retrato existencial da pessoa e que ainda a enxerga como ela era tempos atrás.

Teu amigo era viciado em refrigerante e agora só toma água sem gás. Era o primeiro a sentar na mesa para apreciar um suculento churrasco e agora aderiu ao vegetarianismo. Sempre falou em ter um número de filhos que desse para montar um time de futebol e agora expressa a vontade de ter apenas mais um, para fazer companhia ao Júnior, o único filho até então. Tinha asco ao som de guitarras pesadas, pois só ouvia MPB em volume baixo, mas agora ouve rock´n´roll e metal a todo volume. 

Certamente você vai pensar que aconteceu alguma coisa esse amigo, pois ele mudou muito. Claro! Ele mudou de cidade, de emprego, ampliou o círculo de amizades, conheceu uma garota, casou-se com ela, teve um filho. Não é de estranhar que ele tenha mesmo mudado, não é?

Você pode ficar se perguntando como um outro amigo seu não teve essas mudanças, apesar de ter passado por contextos e circunstâncias parecidas. A resposta me parece simples: isso se dá porque cada criatura humana é única, cada pessoa possui um universo singular. E estamos tratando, aqui, de existência, não de lógica matemática.

As mudanças que uma pessoa realiza no decorrer de sua trajetória mundana não necessariamente indicam que ela está sendo contraditória, que não tem princípios, que deixou o poder subir à cabeça, ou coisas assim.

É comum que muitos vejam a pessoa como um retrato existencial que foi feito dela há um tempo atrás. Esse retrato é como uma foto, que cristaliza a pessoa e mantém estática a imagem dela como se ela tivesse a necessidade de ser sempre daquela maneira.

Se olharmos para a nossa própria história veremos que algumas vezes fomos incompreendidos ou julgados por uma imagem existencial que fizeram de nós há muito tempo e que aqueles elementos que tem na foto não estão mais presentes em nossa vida. Por outro lado, provavelmente já utilizamos retratos existenciais de alguém que conhecemos, ou seja, olhamos para a pessoa como se ela fosse a mesma e tivesse os mesmos elementos de algo que não diz mais respeito a ela.

O indicado é que os dados sejam atualizados, ou seja, que verifique-se como a pessoa está no mundo agora (e como estamos no mundo também), para não cairmos em equívocos e dubiedades que possam prejudicar nossas relações.

*Everton Augusto Corso
Filósofo, especialista em filosofia clínica, poeta, cronista
Chapecó/SC

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