Quando comecei a
correr, fazia por esporte. Mais tarde, descobri que além do benefício saúde
física, a corrida me deixava tranqüilo, bem humorado e inspirado para a vida.
Não sei explicar como funciona, mas a sensação que tenho é que à medida que me
desloco para frente, as preocupações vão ficando para trás.
Funciona como uma
terapia alternativa. Se alguma ansiedade começa a incomodar, coloco o tênis,
calção, boné e saio trotando. Troco percursos, inverto o sentido das ruas,
acelero o passo, desço ladeiras. Preciso estar em movimento. Quase sempre,
depois de uns 30 minutos de corrida, já me sinto bem melhor, sem apreensão
alguma.
Aproveitando esta
experiência do bem estar promovido pela corrida, decidi fazer um movimento
diferente. Uma viagem sem destino fixo, sem horários e sem data para voltar,
com todas as estradas que o mundo oferece abertas. Meus únicos compromissos
seriam deixar a vida me levar e dar espaço para as emoções escolherem o melhor
caminho.
Juntei um bom dinheiro,
arrumei a mochila e parti para a Europa. O ponto de partida seria Cascais, uma
cidade litorânea em Portugal, na qual já havia estudado e tinha ótimas
recordações. Reservei o mesmo hotel daquela época. Ficava em frente a praia.
Uma baía que durante o dia recebia os banhistas e à noite os barcos dos
pescadores.
O cheiro de peixe
fresco, as aves voando sob a luz da lua refletida no mar, o chope super gelado
servido no bar irlandês, a música pop ao vivo pareciam dar uma sensação de paraíso,
segurança e tranqüilidade.
Mas não era nada disso,
eu estava perdido. Logo percebi que correr mecanicamente com as pernas é uma
coisa, viajar com as emoções é outra bem diferente. Sabia fazer programa de
turista, visitar museus, parques, restaurantes, mas não tinha a menor noção de
como viajar sensorialmente, absorvendo e deixando um pouco de mim em cada
lugar.
Minha jornada estava
ligada a movimento, mas era um tipo de ação diferente. As surpresas do caminho
apareceriam quando eu menos esperasse, ou quando as percebesse. Exigiria atenção, vivência, sensibilidade.
Deveria ser uma corrida diferente das que estava acostumado. Corrida com
pausas, ou quem sabe até, mais pausas que movimento.
Durante três noites
seguidas freqüentei o mesmo bar. Entre um chope e outro conversava com o
garçom, um senhor irlandês que escolhera aquela praia para fugir de Dublin e
montar família. O bar estava quase fechando, cinco horas da manhã, o sol
nascendo, mas lembro bem de quando Peter, o velho amigo/garçom entregou a conta
das despesas junto com um bilhete. Apenas quatro palavras e um piscar de olhos:
Release – Recover – Recharge - Remember.
Apesar do adiantado da
hora e da quantidade de bebida, ainda assim, reconheci que aquilo fazia sentido
com nossas conversas e poderia me ajudar. O problema é que não vinha com manual
de instruções, mapa, caminho, direção. Apenas quatro palavras em inglês.
A viagem era só minha e
a vida não funciona como um manual.
Deveria descobrir o caminho e dar o primeiro passo. Já havia começado e
nem havia percebido. Minha primeira atitude pareceu um tanto radical: abandonei
relógio, telefone celular e computador. Quase ao mesmo tempo, procurei deixar
as preocupações rotineiras do outro lado do Atlântico.
Mas a liberação que
precisava ser feita era outra. Papel existencial, títulos, currículo, posses
(coisas e status atrás das quais algumas pessoas se escondem) também faziam
parte do pacote a ser descartado. Na teoria pode parecer fácil, mas na prática
é como pedir para uma tartaruga deixar seu casco e andar desnuda, magrela,
frágil, se expondo, sem receio de passar por ridícula.
A jornada precisava ser
realizada sem adornos ou máscaras. Qualquer portal ou fachada pesariam demais
na bagagem. Autenticidade era o preço da passagem.
Precisei de um tempo e
algumas recaídas para me acostumar. Sentava no banco da praça e ficava
observando as pessoas que por ali circulavam. O pescador voltando para casa com
aspecto de esfomeado, a florista de preto arrumando os vasos, a menina de
óculos sendo puxada pela coleira do cão, os estudantes fumando maconha sentados
atrás da árvore. Imaginava como seriam suas vidas e o quanto representavam ou
estavam sendo autênticos.
Volta e meia durante
uma conversa, ainda exibia alguma façanha, ressuscitava outra sedução. O
período de recuperação terminou quando senti que abandonando estas posturas não
estava perdendo nada.
Pelo contrário, ficava
mais leve para me recarregar, e isto envolvia deixar de observar as pessoas e
passar a senti-las, colocando-me em seus lugares. Tomei coragem e sentei ao
lado da florista, uma linda mulher, cabelos pretos e longos com aproximadamente
45 anos de idade. Puxei assunto, ela respondeu sorridente e logo estávamos numa
animada conversa. Ela falava português e espanhol. Fácil de entender.
Ensinou-me que existem
folhas que funcionam como lixas para unhas e folhas que funcionam como algodão,
tamanha a suavidade. Contou-me que assim como rosas podem embelezar casamentos
e cemitérios, flores também brotam e murcham proporcionalmente à energia que
recebem, no entanto, flores precisam
desabrochar para continuar a viver, pois reter é quase como perecer.
Convidou-me para
visitar sua casa. Um verdadeiro jardim multicolorido. Paredes e móveis
completamente integrados com plantas. Serviu-me um chá com pétalas e ervas que
colhemos juntos, cuidadosamente para não
machucar as flores. Na medida em que ia saboreando, o sabor de campo se
misturava ao cheiro das flores. Tudo fazia sentido. Tudo parecia estar no lugar
certo. Aquela tranqüilidade que eu não sabia se iria encontrar, ali escancarava
sua imponência.
Contou-me que se vestia
sempre de preto para realçar o colorido da natureza. Ensinou-me também que a
beleza das flores não está na forma e sim na essência. Tapou meus olhos com uma
venda preta para que pudesse sentir o perfume exalado e a maciez das pétalas e
folhas. Em seguida pediu-me para imaginar a forma e cor daquela experiência.
O perfume iria marcar
meu olfato e minha mente. Sempre que o sentisse, independente de estar na
presença da planta, a imagem da flor criada naquele instante, brotaria em minha
memória.
A noite estava
começando e flores dormem cedo. Combinamos de nos encontrar na praça na manhã
seguinte. Voltei caminhando para o hotel. Enquanto pensava nas flores e ainda
sentia os aromas, cruzei com uma tartaruga na estrada.
Ao sentir minha
presença, o animalzinho preferiu se encolher e refugiar-se dentro do pesado
casco que se obriga a carregar nas costas e faz com que suas caminhadas sejam
lentas, quase arrastadas. A tartaruga
vive em média 200 anos escondida. Vive ou apenas existe?
Viver é a coisa mais
rara do mundo, mas para desfrutar desta felicidade, melhor não alimentar demais
a tartaruga que nos habita.
*Ildo Meyer
Médico, Escritor, Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS
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