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Marionetes*


“Valorize os seus limites e por certo não se livrará mais deles”
(Richard Bach)

Somos seres complexos e dinâmicos, moldados por circunstâncias e crenças que coexistem e são tão incontáveis quanto as estrelas no céu, que brilham divinamente alheias a nossa vontade. Elas (as estrelas) se infiltram pelas existências como a bruma penetra o vazio e preenchem de sentido o que lhe convém, não necessariamente a favor daqueles a quem iluminam, mas sempre em movimento e com um delicioso toque de mistério no ar.

Somos também seres bizarros, suspensos por fios imaginários e à mercê de intenções que vasculham territórios – supostamente invioláveis – invadindo-os e arrebatando-os de sua frágil plasticidade. Ao cavalgar unicórnios delirantes pelas infindáveis e confortáveis redes, avança-se e penetram-se entrelinhas de um cotidiano fluido e surreal, composto de seres ávidos por utopia, que em muitos momentos não se importam em transgredir essências através de superficialidades.

Transitar por vieses translúcidos requer certos atributos especialíssimos, principalmente o entendimento de que respeito é bom e todo mundo gosta, mesmo quem não admite, e a lembrança de que há limites... até para o bom senso. Arrogâncias e descontroles não devem ser convidados para a festa, já que algumas expressividades se ressentem sensivelmente, além de ser indelicado, mesmo com os mais fortes. Assim, também não deveria haver espaço para a intransigência, injustiças ou preconceitos vãos, embora seja possível questionar se há algum preconceito que não seja vão. Talvez haja... quem sabe aquele que tenhamos sobre nós mesmos, sobre pensares e sentires que nos escapam e sobre a rigidez que generosamente deixamos escorrer de nossas sublimadas entranhas.

Certo que não nos dispensamos nem das circunstâncias, nem das crenças e muito menos das estrelas. Uma vez saturados, voltamos ao ponto de partida para nos autoatribuir novas indagações, novos sentidos e novos sentires, perfazendo caminhos familiares à alma. No percurso, extravasamos os sabores que acumulamos e que por vezes nos tornam irascíveis e potencialmente suspeitos do que somos. Então expressamos confusões da alma... das trilhas por onde não supúnhamos poder passar, mas que, por isso mesmo, sedimentam solos que ainda não estão maduros.

Assim são as singularidades... diversas entre si e imprevisíveis. Não melhores ou piores, apenas diferentes. Da mesma forma, é sempre válido lembrar que não existem interpretações verdadeiras ou falsas, corretas, erradas ou duvidosas. Existem interpretações. Cada um observa o mundo a sua volta a partir de um ângulo peculiar, distinto do ângulo de qualquer outro ser, não importa quem este seja. E os contextos, mesmo os que compõem a previsibilidade do caminho, também se alternam e se conflitam... revelando facetas que desconhecemos, mas que não necessariamente nos representam em essência.

Defendemos o que acreditamos, bradamos aos sete ventos as circunstâncias e crenças das quais nos arvoramos e que nos tornam cegos à amplitude e ao respeito que a liberdade e a diversidade demandam. Mas (in)felizmente, o pulsar da vida requer mais do que a imersão no vazio interior... demanda isenção dos obstáculos existenciais. Talvez integridade seja isso: estar imerso e, simultaneamente, isento de quaisquer grilhões, ainda que obviamente os grilhões componham a essência. Talvez...

Mais provável, suponho, é que sejamos marionetes sujeitas a certas condições e medidas (com margens de erro) ditadas pelo nosso próprio – assim como de outros - tempos, textos, contextos, eventos, genéticas e sabe-se lá mais o que. Fazemos emissões a partir de sentimentos, ideologias, culturas... quase tudo invariavelmente delimitado pelas circunstâncias que nem sempre se mostram interessadas em tornar plausíveis e compreensíveis as leituras subjetivas que se sucedem. Na verdade, circunstâncias quase nunca são óbvias. Pois, por trás de cada simples evento, há uma montanha de interesses, intenções, impossibilidades, vontades claras e ocultas, assim como de fatos, ainda que muitas vezes distorcidos.  Então, não deveria haver tantos ‘estares’ mal suportados ou mal entendidos. E assim, lá se vai nossa provável integridade...

Provavelmente não nos damos conta, mas a verdade é que não devemos ser considerados paladinos do que quer que seja. Socraticamente falando, prudente reconhecer que sabemos muito pouco de quase nada e devemos considerar a hipótese de que estamos engatinhando na tênue, gentil e acolhedora, mas igualmente inconstante, atmosfera espacial e temporal. Um passo em falso da (em geral) paciente – mas nem sempre bondosa – natureza, e tudo seria posto a perder. Um equívoco de decodificação e nossos genes não saberiam distinguir o céu do mar, quiçá outras supostas verdades a que tão afrontadamente defendemos. Não há somente um universo a ser desvendado... há infinitos. 

Recordando o Cosmos, do saudoso Carl Sagan, percebemos que realmente não passamos de uma voz na fuga cósmica. Nossas partículas existenciais mal caminham sobre as próprias pernas e estamos continuamente fugindo de algo que desconhecemos. Isto não nos denigre ou exalta pois, ao contrário do que muitos pensam, salvo raras exceções, somos uma espécie guerreira e surpreendentemente peculiar, além de inacreditavelmente resistente. Quase certo que vamos sobreviver aos nossos próprios dilemas. E mais... talvez o Deus do coração de cada um abane em direções diametralmente opostas às nossas atuais certezas. Mas se assim for, não hesitaremos em comer outras frutas.

Acreditamo-nos convictos de tantas verdades, certezas ou necessidades, principalmente na pretensa arte de pré-julgar outros por circunstâncias efêmeras, mas não devermos nos precipitar ao que quer que seja, muito menos à arrogância. Algumas virtudes precisam entoar seus cânticos celestiais, mesmo que as notas da sapiência precisem ser comparadas a um puxão no freio para refrear atitudes e a um espelho retrovisor, que nos leva a olhar em volta e para trás. Não estamos sós. Na peculiar bolha na qual mergulhamos faz-se imprescindível avaliar que somos todos suscetíveis, vulneráveis e encantadoramente engessados. Nossas falas e sons, posturas e discernimentos, ainda que detentores e agregadores de valor, não estão imunes, através do olhar mais atento, das mesmas circunstâncias que as provocaram.

O fato é que somos frutos germinados de um acaso incompreensível... considerando que nada (nem o acaso) escapa aos olhos que nos contemplam benévolos do alto de sua magnificência. Temos, enfim, nosso quinhão de previsibilidade. Porém, os mesmos olhos que nos contemplam também nos integram. E assim somos, constantemente, levados ao sabor do vento a sobrevoar paisagens ainda inexploradas do espaço e do nosso âmago. E descobrimos que mais uma vez nos surpreendemos...

*Luana Tavares
Filósofa Clínica
Niterói/RJ

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