Tento escrever meu terceiro romance.
A experiência é aflitiva: imitando a improvável domesticação dos animais
selvagens, lido com um material que, à minha revelia, a toda hora se transforma
e se rebela. Em definitivo: não sou eu quem comando. É muito doloroso aceitar
isso. Aceitar que escrever uma ficção é, quase sempre, uma experiência fora de
controle. Que o livro segue seu próprio caminho, em absoluta indiferença para
com seu autor. Que, quanto mais avançamos, mais contato perdemos.
Encontro consolo lendo uma entrevista
de Ricardo Piglia publicada na revista "Otra Parte". A entrevista se
chama: "A narração como iminência do fecho". O remate, ou conclusão,
é o enervante destino de qualquer relato. É nele - é a partir dele - que toda a
narrativa se desenha e encontra sua forma. Que toda narrativa se forma.
"Penso que teríamos que partir da ideia do fecho como lugar de cruzamento
entre experiência e literatura". É ali, onde o real enfim se impõe, que um
autor ganha uma assinatura e um texto recebe, enfim, sua legitimidade. É ali,
na conclusão, que tudo se organiza e ganha corpo.
Por outro lado, prossegue Piglia,
devemos entender o fecho como "uma espécie de constrição, no sentido do
Oulipo, isto é, uma condição da forma". Oulipo foi um grupo literário
francês que pregou o estabelecimento de regras rígidas como condição essencial
para a escrita literária. O Houaiss define a contrição como "uma pressão
circular que faz diminuir o diâmetro de um objeto". É essa pressão final,
como o arremate de um costureiro, a alinhavada final, que acomoda e organiza
toda a dispersão anterior. Até chegar ao fecho, toda a experiência do escritor
é de desorganização. É de caos. Só o destino final empresta à ficção sua face.
Chega-se, então, nos diz ainda Piglia, não a um sentido abstrato, mas "ao
sentido para o sujeito mesmo". Ali uma autoria se ergue e se impõe. Ali o
caos se represa e é contido na barreira de um sujeito. O sujeito da ficção.
Mas a parte que mais me interessa _
que mais me consola _ na entrevista de Ricardo Piglia é aquela em que ele
admite seu absoluto descontrole sobre sua escrita. Cheio de coragem, ele nos
diz: "Nunca termino de escrever a história que está na origem da narrativa
que escrevo. Sempre estou escrevendo uma história que se converte em outra e a
ficção toma uma forma que não estava prevista". O autor pensa que escreve
um relato e escreve outro. Pensa que caminha em uma direção, quando na verdade
marcha na oposta. Tudo isso é motivo de muita angústia. É a aceitação dessa
angústia, porém, que conduz à ficção.Essa experiência de descontrole - que todo
escritor sempre experimenta _ é, na verdade, a condição de sua escrita. Sem
ela, ninguém escreve.
Só porque se descontrola e se perde um autor
chega a escrever. Só porque não sabe onde está ele encontra, enfim, seu lugar e
sua autoria. Essa aflição primordial exige do escritor uma grande paciência.
Precisa suportar a cegueira na qual trabalha. Precisa estar disposto a
arriscar-se em caminhos que desconhece. Precisa, enfim, se dar uma intensa dose
de liberdade interior, ou a escrita emperra. O mais difícil não é, portanto,
escrever, mas se conceder essa liberdade. Por isso mesmo, liberdade podia ser o
outro nome da ficção.
Curiosa liberdade, que exige que
se passe antes pela experiência de aprisionamento. Mas não podia ser de outra
maneira. A liberdade não é tudo, não é ter tudo. A liberdade é a possibilidade
de escolher e acessar uma forma. De tomar uma posição, e não outra. O
aprisionamento - o limite -, portanto, é condição primordial da liberdade. Sem
essa experiência do limite - sem essa experiência da contrição _ ninguém
consegue traçar um corpo, seja ele físico, ou literário. Prisão e liberdade
estão, por fim, intimamente associadas. Só depois de atravessar uma prisão, um
escritor pode encontrar a posse de si mesmo.
*José Castelo
Comentários
Postar um comentário