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Herói [1]*


A figura do herói como aquele que passa por dificuldades e, através de força interna e externa, persistência, coragem e determinação, vence seus obstáculos serve hoje de motivação para empreitadas pessoais. E este herói, diz-nos a sociedade e o conceito de resiliência (devidamente mal aplicado, diga-se de passagem), está no nosso lado, no dia-a-da, naquele ou naquela que luta diariamente pelo sucesso no jogo da vida. 

É, como em Homero, um herói solitário e individual, mas também é como em Hesíodo, um herói que dá conta não de ações guerreiras em favor de uma pátria, mas de ações mundanas que dignificam sua luta e dão valor à sua vida de trabalhador.

Partindo desse pressuposto moderno de herói é que o senso comum, aqui entendido como o modo de ser de pensamento cotidiano (Márcia Tiburi, Filosofia Prática – ética vida cotidiana e vida virtual) divulga essas atitudes, posturas e condutas éticas como modelo de virtude. Assim até os participantes do Big Brother tornam-se heróis frente ao apresentador e divulgador do senso comum como se fosse profundo pensamento crítico ou divergente.

H. L. A. Hart, filósofo inglês do direito (entre outros pensadores) coloca que uma atitude heroica vai além dos deveres reconhecidos na prática efetiva dos grupos sociais (O Conceito do Direito). Ao adentrar no jogo da vida vamos adicionando, com o passar dos anos e da idade legal, muitos deveres e responsabilidades, queiramos ou não. Trabalho, produção, família, sustento de outros que não somente nós mesmos, obrigações sociais como o voto ou participação ativa em grupos sociais, entre outros. 

O modo como tentamos resolver essas questões e manter-nos dentro das regras do jogo define muito de como os outros jogadores vão agir frente a nós e, então, aceitarão nossas jogadas ou nos colocarão em algum lugar do tabuleiro da vida fora da estrada normal que leva o jogo adiante. O conflito entre valores éticos (considerando nossos valores pessoais) e valores morais (considerando valores sociais aceitos que mantêm o jogo em atividade) não tarda a acontecer. 

As escolhas que fazemos para resolver esses conflitos é em grande parte responsável pela maneira como somos vistos socialmente: úteis, indiferentes ou como ameaça aos padrões estabelecidos socialmente. E, para aqueles que foram considerados uma ameaça e, portanto, foram ou estão sendo excluídos do jogo da vida pelos outros participantes, é que o termo herói é atribuído. Mas aí é que entra o conceito defendido por Hart, de que um herói é um tipo extremo que vai além do dever, seja pessoal ou social, vai além daquilo que poderia ser exigido dele. Essas ações que vão alem do dever não são ações para sua vida particular ou para aqueles a quem tem relação direta, mas para uma sociedade como todo. 

Neste sentido, não existe herói de si mesmo ou herói da própria vida por vencer na batalha do jogo da vida. O herói só é considerado assim se, por escolha própria, sem uma obrigação moral reconhecida publicamente ou de forma privada, pratica o bem alheio, inclusive contra, muitas vezes, sua própria segurança e convicções. Toda ação desta natureza é louvável e digna de elogio. Porém, ações que visam resolver ou defender os deveres ou obrigações morais reconhecidos pelos grupos sociais e que fazem a pressão sobre os indivíduos, não contam como ações heroicas. São trabalhosas, difíceis, controversas, complexas, complicadas e exigem coragem, persistência, força, energia e disposição, mas não são exemplos de heroísmo.

Heroísmo não tem a ver com classe social, bens materiais ou outra divisão social que seja considerada, pois um herói, levado por uma auto-obrigação interna, está disposto a vencer e ultrapassar todo e qualquer limite imposto pelo jogo da vida e pela moralidade imposta socialmente, inclusive sua ética pessoal formada pelos seus pares e próximos. É uma figura que não vemos hoje em nenhum âmbito de nossa sociedade e é preferível que seja uma ausência a ser algo estereotipado por um apresentador comum com mania de grandeza e pessoas que não passam de caçadores de recompensas dispostos a abrir mão de qualquer valor ético ou moral em função de vencer na vida. Se é que se possa vencer algo ao perder tudo.

[1] Este é um texto em homenagem ao meu filho Bernardo Fontoura que, em fevereiro deste ano, aos dezesseis anos, faleceu de um câncer no cérebro. Na cama da CTI, este foi um dos últimos assuntos que discutimos e ao qual ele mostrava toda sua indignação. Outro assunto que o incomodava muito era a intolerância religiosa principalmente àqueles que são ateus. Como dizia Locke, tolerância religiosa é imprescindível, mas somente para aqueles que têm religião. O ateu é uma ameaça e não confiável. Bernardo, a seu modo, argumentava veementemente contra isso.

*Fernando Fontoura
Filósofo, Mestrando em Filosofia, Estudante na Casa da Filosofia Clínica
Porto Alegre/RS 

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