Em uma entrevista, o
filósofo Pierre Hadot define sua conversão filosófica na juventude a partir da
uma visão espetacular do céu noturno e, definindo a emoção que o acometeu
naquele momento, diz que foi invadido por um “sentimento oceânico” de prazer e
admiração. Vou usar essa expressão dele com uma pequena alteração na linguagem
mas tentando manter o significado no sentido de uma coisa que é maior do que
aquilo que se pode suportar e que acaba por colocar abaixo os limites que antes
faziam parte desse algo bem definido.
No caso, vou usar a
frase invasão oceânica. O sentido dessa frase já coloquei, mas em que contexto
pretendo usá-la? No contexto familiar. A psiquiatria e seus conceitos já
romperam a barreira da própria profissão e assim invadiram várias instituições
e áreas que nada tinham a ver com sua atividade inicial e seu território
original. Uma dessas instituições e território invadido foi o das escolas.
Elas, por sua vez,
invadidas, acumularam os conceitos estrangeiros à sua atividade inicial e
original, a pedagogia, e derramaram de forma avassaladora sobre outro
território que, agora vou usar a frase, sofreu (e sofre) uma invasão oceânica,
a família. É uma invasão de esferas onde uma coloca sobre a outra seu
poder-saber e utiliza disso para ter privilégios e prerrogativas “científicas”
como argumento da invasão.
O saber-poder de ambas
não apenas invade de forma oceânica a esfera familiar, mas esvazia o pouco
saber dos pais. Então, a conta fica mais ou menos assim: psiquiatria + escola =
invasão familiar. Essa conta se soma a outra, mais ou menos assim: preocupados
com seus afazeres + pais ausentes = filhos como estranhos. Fica fácil invadir
uma esfera sem proteção, pois além dos pais estarem preocupados com seus
afazeres – esses disfarçados de preocupação com a estrutura material familiar –
isso faz com que não conheçam seus filhos.
Os filhos, então,
passam muito tempo com professores e coordenadores institucionalizados que
estão carregados de conceitos estranhos à sua profissão mas que os utilizam
como ferramentas para coagir crianças e pais para que seus filhos tenham um
“bom aprendizado” e um “comportamento adequado a um bom aluno”. Pais desarmados
de uma relação observacional não-interpretativa com seus filhos, isto é, não os
veem como são, pois não “perdem tempo” com eles, aceitam facilmente qualquer
conselho e comentário sobre o comportamento e sua saúde mental deles. Como não
mais conseguem ter uma aproximação real com seus filhos, ouvem professores,
coordenadores, psiquiatras, psicopedagogas e todos os tipos de pessoas
institucionalizadas dirigidas a um bom enquadramento do comportamento saudável
de uma criança para aquele fim, aprender.
O fato é que ninguém
medica seus filhos por déficit de atenção ou hiperatividade por brincarem na
pracinha ou porque brigam com seus irmãos ou porque nada fazem com atenção
dentro de casa, não ajudam a arrumar seu próprio quarto ou nem tiram seu prato
da mesa após as refeições. Nenhuma família medica seu filho ou procura um
psiquiatra porque ele ou ela só querem fazer aquilo que realmente querem fazer,
como, por exemplo, jogar bola e brincar de boneca. Pais medicam filhos porque
escolas comprometidas com um ideal de “bom aluno” estão psicologizadas e
psiquiatrizadas em seus conceitos e visão de ser humano. A escola virou um
‘puxadinho’ da clínica psiquiátrica. Pais inoperantes emocionalmente com seus
filhos se tornaram uma presa fácil para àqueles que fabricam doenças. E é claro
que aquele que fabrica a doença também, coincidentemente, tem o remédio para a
cura.
Pais não se dão conta
que quanto mais populares ficam os conceitos mais eles se separam do rigor
conceitual que os originaram. Quando usamos o conceito de depressão para tudo
que parece tristeza, dor emocional, falta de vontade, pessimismo e outras
variantes, é porque já deturpamos totalmente com seu significado original e sua
função. Fazer esse tipo de destruição conceitual só é bom para quem quer usar
indiscriminadamente essa confusão para ganhar algo de forma indiscriminada.
Além dos pais não
notarem que compram conceitos falsos como originais, ainda os usam para
reforçar o poder daqueles que deturparam os conceitos para atingir aos próprios
pais. E ainda saem se vangloriando que estão ajudando seus filhos, pois sabem
perfeitamente que eles têm déficit de atenção, hiperatividade e qualquer
transtorno comportamental. Sabem como? Pelos profissionais invasores com
conceitos deturpados.
Essa invasão oceânica
da qual as famílias estão sofrendo pelas esferas que nada tem a ver com
questões familiares está enfraquecendo a família ainda mais. A criança passou a
ser um problema a ser resolvido por qualquer profissional institucionalizado,
menos os pais, pois estes não têm diplomas. Essa invasão oceânica institucional
não se dá somente por essas áreas que já estão adentrando a vida familiar. Uma
segunda ou terceira onda está vindo pegar essa rebarba de famílias
desorientadas e afastadas emocionalmente de seus filhos.
Um exemplo que está
crescendo é o conselho de educação física. A propaganda deles hoje quer
fazer-nos crer que toda e qualquer atividade requer a atenção e acompanhamento
de um educador físico especializado, formado e cadastrado no fabuloso conselho.
Já estão querendo que naquelas “academias” ao ar livre que estão nos parques do
Brasil, estejam presentes profissionais de educação física e que somente com
eles as pessoas possam utilizar esses aparelhos.
Não tardará o dia em
que, no hospital, a primeira visita de uma mãe e um pai que recém tiveram um
filho, será de um profissional de educação física vendendo sua especialidade
para um bom engatinhamento de seu mais valioso tesouro, seu filho!
A coisa está passando de todos os limites e as
esferas são invadidas a torto e a direito e todas convergem para a esfera maios
fraca, a família. Tudo que adentra o âmbito familiar hoje está
institucionalizado. Como dizia Thomas Szasz, até as árvores que estão no meio
da avenida foram lá colocadas por uma empresa de paisagismo.
A sociedade hoje é
pedagogizada (para tudo é necessário um aprendizado formal em uma instituição
de ensino), psiquiatrizada (para todo comportamento há uma explicação cerebral)
e institucionalizada (todo produto, de coisas materiais até emocionais, só tem
valor quando vêm com um selo de uma instituição ou empresa ou indústria especializada
naquele produto. Aliás, o que não é produto hoje?). Prova disso que até a
família virou “instituição”.
A barreira necessária
para conter essa invasão oceânica que adentra a vida familiar, principalmente
pela escola-institucionalizada-psiquiatrizada é simples, porém nada fácil:
conhecer seus filhos in natura, sem remédios, sem contos de fadas e
expectativas positivas, apenas literalmente, observando como são e como se
relacionam. Ouvi-los e aceitá-los como são.
Para isso seria
necessário uma visão complexa de ser humano, não determinista e nem simplista.
Algo que, pela velocidade em que vivemos, seria quase um mundo paralelo em
outra dimensão. Outra alternativa é deixar tudo como está e nos afogarmos nessa
onda gigante que não respeita a singularidade e a diferença.
*Fernando Fontoura
Filósofo, Mestrando em
Filosofia, Estudante na Casa da Filosofia Clínica
Porto Alegre/RS
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