Querida íbis:
Desculpa o papel
impróprio em que te escrevo; é o único que encontrei na pasta, e aqui no Café
Arcada não têm papel. Mas não te importas, não?
Acabo de receber a tua
carta com o postal, que acho muito engraçado.
Ontem foi — não é
verdade? — uma coincidência engraçadíssima o facto de eu e minha irmã virmos
para a Baixa exactamente ao mesmo tempo que tu. O que não teve graça foi tu
desapareceres, apesar dos sinais que eu te fiz. Eu fui apenas deixar minha irmã
ao Avda. Palace, para ela ir fazer umas compras e dar um passeio com a mãe e a
irmã do rapaz belga que aí está. Eu saí quasi imediatamente, e esperava
encontrar-te ali próximo para falarmos. Não quiseste. Tanta pressa tiveste de
ir para casa de tua irmã!
E, ainda por cima,
quando saí do hotel, vejo a janela de casa de tua irmã armada em camarote (com
cadeiras suplementares) para o espectáculo de me ver passar! Claro está que,
tendo visto isto, segui o meu caminho como se ali não estivesse ninguém. Quando
eu pretendesse ser palhaço (para o que, aliás, o meu feitio natural pouco
serve) oferecia-me directamente ao Coliseu. Era o que faltava agora! Que eu
tolerasse a brincadeira de ser dado en spectacle para a família!
Se não havia maneira de
evitares estares à janela com 148 pessoas, não estivesses. Já que não quiseste
esperar-me ou falar-me, ao menos tivesses a cortesia — já que não podias
aparecer só à janela — de não aparecer.
Ora eu não posso estar
a explicar-te estas coisas. Se o teu coração (supondo a existência desse
senhor) ou a tua intuição te não ensinam instintivamente estas cousas, eu, por
mim, não posso constituir-me em teu professor delas.
Quando me dizes que o
que mais desejas é que eu case contigo, é pena que me não expliques que tenho
ao mesmo tempo que casar com tua irmã, teu cunhado, teu sobrinho e não sei
quantas freguesas da tua irmã.
Sempre e muito teu
Fernando
Esta carta foi escrita
no esquecimento de que costumas mostrar as minhas cartas a toda a gente. Se me
tivesse lembrado disso — acredita — eu tê-la-ia suavizado um pouco. Mas agora
já é tarde; não importa. De resto, nada importa. F.
*Fernando Pessoas
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