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Prefácio***



Esta obra é uma descontinuidade das 'poéticas da singularidade' publicada em 2007 no RJ. Busca tecer críticas, provocar reflexões e insinua caminhos para a desconstrução das práticas ideologizadas a partir das tipologias do desatino. Compartilhar vivências de atendimentos, impressões e pesquisas sobre a raridade existencial da pessoa em refúgios de internação, sejam eles dentro ou fora dos muros do manicômio. Lugar onde a palavra usual encontra dificuldades para chegar e manter interseção com a epistemologia da loucura. 

A singularidade desfigurada pelas intervenções da tradição mostra, antes de mais nada, a aptidão de exclusão das analíticas da correção discursiva. Ao se levar em consideração a distorção, o erro e as contradições do sujeito, reivindica-se o estudo do entorno da pessoa em crise: o contexto, família e o psiquiatra, que são coadjuvantes com poder (jurídico) para transformá-lo em paciente, ao prescrever suas drogas de lógica normal. 

No saber desajustado dos delírios, algo mais se anuncia entrevistas de tradução. Sua fonte de inspiração ao permanecer incógnita, também se anuncia nas tramas de excesso.

O ethos da loucura encena múltiplos personagens, entremeios de rasuras da normalidade. Diante das pretensões da razão classificatória um viés excepcional assume papéis intermináveis. A internação contrariada, a distorção das originalidades, o saber farmacológico e o alienista fundamentam a exclusão representada pela instituição sanatório. 

Ao expor, com sua grande sensibilidade, os absurdos da sociedade que produz sua loucura, o louco a supera outra vez. Seu discurso de transbordamento possui encantos de língua marginal. Aprecia o não-ser como ponto de partida aos esconderijos, até então desmerecidos dentro de si. 

A indústria da loucura encontra apoio significativo das práticas de alienação, onde o consumo a qualquer preço impõe suas regras. As relações passam a ser mediadas pelas bugigangas ao redor. Aptidão de esquiva à introspecção e ao autoconhecimento. Sua característica principal é a insinuação, constantemente remarcada, de alguma forma de ganho, sucesso ou desempenho diferenciado. 

Como a maioria das pessoas pode passar uma vida inteira na periferia de si mesma e a conviver com um ilustre desconhecido, fica relativamente fácil cooptá-las para as verdades ocultas nas relações sociais de objeto para objeto.

No entanto, os rastros da palavra maldita atualizam silêncios, lacunas e transgressões de paradoxo. Devir descontinuado a ensaiar rotas ao ser extraordinário. A imprecisão dessas teias discursivas realiza um trânsito aprendiz pelos ditos exóticos da razão delirante.

Para permanecer como subjetividade indecifrável, o sujeito, muitas vezes, desloca-se nalguma forma de silenciar. Um território novo e sem vocabulário conhecido esparrama vestígios de multidão. Antecipa uma epistemologia dos excessos. As coreografias desdobram-se no intermédio invisível da sanha diagnóstica. 

Ao lugar inacessível para a sintaxe conhecida, uma incompletude discursiva refere indícios de profecia. Fonte de inspiração desmedida aos esconderijos distantes da normalidade.

A folia do fenômeno carnaval pode desfazer vertentes de uma só verdade. Ensaios de natureza mutante desdobram-se na imensidão dos exageros. O ser errático dos devaneios revela interstícios sem correspondência na realidade conhecida. Saber absurdo nas evasivas de introspecção. Aparente desconexão entre nada e tudo de qualquer coisa. Suas exceções convidam para enxergar através dos escombros da historicidade. 

Episódios inesperados apreciam o esboço em caricaturas de aparência incrível. Um querer dizer nem sempre é capaz de transgredir os dialetos conhecidos. Ao visar exaltado da atitude delirante o mundo pode se mostrar alterado. 

Uma vasta região segue indescritível, em uma zona de sombra e luz. A lógica das diferenças, ao tentar descrever as desconhecidas rotas, prenuncia disparates de invenção. 

Assim, é impreciso resgatar o louco de seu exílio, pois não se trata de considerá-lo a partir do ponto de vista normal, mas de respeitar seu viés existencial em uma busca onde todos se encontram. O fato de não compreender sua língua, rituais ou desvario não justifica sua prisão e tratamento de reconversão. 

A natureza absurda desses abismos sugere outras fontes de razão, mesmo quando desmerecida pela medicina conhecida. A internação involuntária, a camisa-de-força do preconceito e as práticas com base no DSM-IV (manual psiquiátrico americano) encontram ecos de evasiva ao desconsiderar segredos encobertos na desrazão. 

Nesse sentido, o caótico instante, as alucinações ou a falta de jeito podem ter diagnóstico de alguma patologia. Sempre que isso ocorre o discurso estrangeiro do alienista procura traduzir o mundo incompreensível do outro em linguagem própria. Ao classificar como insanidade seu deslumbramento com a vida, institui refúgios em caricaturas de coisa nenhuma. 

Aos desatinos contidos na racionalidade, nem sempre basta seguir suas prescrições. Para ela, os extraordinários presentes da vida singular surgem como confusão, desajuste ou dúvida. Talvez a interseção positiva consiga re-significar esses instantes de improvável recomeço.  

À pessoa exilada em si mesma pode restar a expressão dos monólogos com suas paredes. Em meio ao denso labirinto ampliado pela farmácia do hospital, as vozes e visões atualizam a sobrenatural descontinuidade dos dias. Na aproximação com os outros de sua aldeia, o devir da loucura pode surgir como genialidade, desajuste ou simulacro. 

A Filosofia Clínica, como paradigma de obra aberta, aprecia a conversação aprendiz com a trama maldita nas subjetividades. Quem sabe a compreensão dos excepcionais discursos possa revelar outras verdades ?

*Prefácio à obra: "Filosofia Clínica - Diálogos com a lógica dos excessos" publicada pela E-Papers/RJ em 2009. Até esse dia, a expressão 'autogenia' era apenas um tópico da estrutura de pensamento. 

**Hélio Strassburger
Autor de Filosofia Clínica - Diálogos com a lógica dos excessos, dentre outras. 

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