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A palavra interminável*


Existe uma suspeita, de caráter duradouro, sobre a essência da escrita pessoal. Essa trama de eventos cotidianos inscritos na historicidade de cada um. Pode ser uma mescla de lugares, recordações, períodos, épocas, relações, cultura.

Um conjunto de momentos por onde a vida se irrealiza. Quase nunca considerada eficiente enquanto acontece, muitas vezes recuperada, quanto a importância e significado pessoal, bem depois, nalguma terapia, autobiografia ou menção por alunos, familiares, amigos.

O ser interminável em cada um parece proclamar-se na forma ilimitada dos recomeços, enquanto duradouros. Um processo existencial que se desdobra em meio aos afazeres da vida prática, ela mesma integrante dessa eternidade efêmera que se move pelos dias.

Uma fonte de aspecto inesgotável parece querer dizer sobre as possibilidades de ser e não-ser em cada um, na diversidade dos instantes, na superação daquilo feito para perdurar, para além de uma só forma.

A natureza do que permanece em cada um, pode assumir formas estranhas, inéditas até, em busca de sustentação para ser duradouro. Assim nascem as prerrogativas da certeza, as convicções de aspecto inabalável, as sustentações iradas de verdades que não se sustentam sequer na mesma geração de pensadores.

Talvez um texto de maior alcance na linha de um tempo interminável, reivindique acolher ideias de impermanência para se manter. O esboço pessoal compartilhado nas rotinas e surpresas do cotidiano pode requerer, de vez em quando, uma borracha para apagar o que não se quis dizer.

Nesse processo de inacabamento pessoal, por onde transitam as possibilidades de quem ainda vive, existem múltiplos labirintos inexplorados, desvios realizados a contragosto, tragédias, comédias, paixões, que desenvolvem, muitas vezes, aptidões ou vocações desconsideradas.

A palavra interminável acontece sem aviso prévio, sustentação teórica ou prática. Ela chega de repente para poder se mostrar no curso de um evento qualquer. Seu ser irrestrito aponta, sugere, contradiz, repercute, poetisa, descreve, inventa. Por uma vivacidade que afronta os limites do normal, precisa ser cuidada com um carinho e acolhimento de um jardineiro eficaz.

Nessa fonte inesgotável de vida, desdobram-se as homenagens a Dionísio. Apolo também se apresenta, em busca de formalizar os ímpetos de viver e sobreviver de sua cara metade. O inacabamento dos eventos da vida parece querer dizer coisas ininteligíveis à razão conhecida.

Ao tentar acolher o saber da palavra interminável, se descobre que a sua duração está intimamente ligada aos pequenos desfechos diários, as micro conclusões, aos términos e tentativas de fechamento eficaz, na relação com aquilo que busca se manter, ainda quando contrariados.

O discurso diário presente em cada período da historicidade, mais que dizer aquilo que quer dizer, aponta novidades até então desconhecidas, quem sabe até, por se tentar uma conclusão desmerecida pela descontinuidade dos dias, que se multiplicam para bem depois da palavra assassinada.    

*Hélio Strassburger
   Filósofo Clínico

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