Seria o primeiro dia
dos pais em que ele não estaria conosco. Falecera em setembro passado e sua ausência física ainda era bastante
presente. Estava desconfortável com a aproximação da data, pois sabia que
recordações e lágrimas fariam parte deste “dia festivo”, e não me sentia
animado para comemorar nada, sequer um simples almoço em família.
Preciso voltar um pouco
no tempo. Logo após ele ter nos deixado, escrevi um artigo dizendo que pais não
morrem, ficam invisíveis. Passado quase um ano, refleti melhor e hoje, penso
que pais, mesmo vivos, são invisíveis na maioria do tempo. Filhos se comportam
(ou descomportam) pela vida afora, seguindo experiências e exemplos observados
presencialmente com seus pais. No entanto, mesmo longe da prole, o que se
constitui quase a totalidade do tempo,
pais ainda continuam introjetados nos filhos, que anseiam a aprovação de
suas condutas por parte de seus progenitores.
É como se os pais
estivessem invisíveis observando-os a todo momento. O menino gazeia aula na
escola, mas tem receio que o pai descubra; a garota volta tarde da balada e
entra em casa na ponta dos pés para não ser percebida; o jovem fuma um baseado
e depois escova os dentes para não ser descoberto; o casal separa e tem receio
de contar para os pais. Não querem desapontá-los. Enfim, pais estão invisíveis
no imaginário, no consciente, no superego, na transgressão, na culpa, na
alegria e na tristeza dos filhos.
Por conta desta forma
de pensar, aproveitei a invisibilidade perceptível de meu pai para amenizar o
mal estar de comemorar o dia dos pais em
sua ausência. Sei que pode parecer bobagem ou loucura, mas reservei três
lugares para almoçar no restaurante: um para mim, um para meu filho e outro
para meu pai, que estaria ali sentado, só que não o enxergaríamos. Poderíamos
conversar, contar coisas que aconteceram ao longo deste ano, pedir desculpas,
conselhos, favores...
Marcamos o encontro
para as 13:30 h no restaurante. Quase 14 horas e meu filho não aparecia.
Preocupado, liguei para ele, que me respondeu estar atrasado e com demora
prevista para mais uns quarenta minutos. Por alguns instantes fiquei chateado,
famílias comemorando, se divertindo, e eu, solitário, em uma mesa com dois
lugares vazios. Não sabia se passava uma descompostura em meu filho pela desconsideração,
ou fazia de conta que nada havia acontecido.
Durou pouco o
aborrecimento. Chamei o garçom, pedi uma cerveja para mim, um refrigerante para
meu pai e me pus a conversar com ele. Não havia planejado nada, mas a situação
criada pelo atraso me deu a oportunidade de resgatar um diálogo interrompido.
Às vezes, cuidamos de
um ente querido, ficamos a seu lado, conversamos, choramos, sorrimos, nos
abraçamos, despedimos, mas não conseguimos expressar o mais importante. Por
algum motivo, aquilo que gostaríamos de falar fica trancado e não consegue ser
dito. Aquela ocasião, dia dos pais, burburinho das pessoas, pratos desfilando,
havia se transformado na hora certa e no momento exato. Não iria perder esta
chance.
Apesar de saber da
gravidade e do avanço inexorável da doença, meu pai resistiu com todas suas
forças a nos deixar. Temia pela segurança da família em sua falta. Sempre fora o provedor, cuidador, acolhedor,
conselheiro, pai, avô, amigo e lhe era difícil imaginar esposa, filhos e netos
sem sua guarda. Quase sem energia para falar, comer ou respirar, ainda assim,
preocupava-se com todos. Era ele quem zelava por suas cuidadoras, e não o
contrário.
Pensei várias vezes em
lhe tirar esta responsabilidade, dizendo que ficasse tranqüilo e partisse em paz,
pois cuidaríamos uns dos outros na sua privação. Mas não tive forças, faltou
coragem ou até mesmo lucidez. Receava
ser mal interpretado ou magoá-lo. Fiquei
com esta fala engasgada, ele foi embora e não consegui dizer.
Um ano depois, sentados
só os dois em uma mesa de restaurante, consegui dizer aquilo que talvez ele
estivesse esperando há 12 meses para partir em paz. Um atraso de 365 dias de
minha parte, uma espera de um ano da parte dele.
Quando meu filho
finalmente chegou ao restaurante, com apenas sessenta minutos de atraso, e com aquela cara de
apressado/desculpa/aprovação, você acha que lhe passei uma descompostura ou um
forte abraço? E quem estava sorrindo e feliz nos observando em sua
invisibilidade?
*Ildo Meyer
Médico. Escritor. Filósofo Clínico. Autor de 'Visita de Médico' pela Editora Vozes.
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