A literatura é um ponto
de partida fundamental para quem quer se aventurar a pensar filosoficamente a
própria existência. Aliás, só há filosofia em seu sentido originário – tal como
proposto e exercido por Platão e Aristóteles – se for intrinsecamente ligada à
vida, à própria vida. E em tempos nos quais as chamadas ideologias estão em
voga, a realidade perde a vez para atribuições que se propõem a descrevê-la
quando, na verdade, a reduz a elementos limitantes: direita/esquerda,
proletariado/burguesia, cativeiro/libertação etc. Mas, o que tem a ver a
filosofia com a literatura?
Nossa vida é
constituída de experiências restritas. Não conseguimos viver todas as
possibilidades por nossas próprias condições limitantes: geográfica, somática,
psíquica, social, histórica etc. Com isso, pensar a vida em seu caráter mais
amplo, em busca dos elementos universalmente constitutivos somente é possível
ampliando o horizonte de perspectivas e experiências. Para isso é que a
literatura auxilia.
O convívio com a obra
literária nos aproxima das possibilidades de existência pensadas e imaginadas
pelo escritor. O conjunto de perspectivas acrescentadas à nossa experiência por
meio de inúmeros autores amplia a visão de mundo de tal modo a dar abertura
para a reflexão filosófica. Mas, o que é uma reflexão filosófica?
A filosofia não é um
conteúdo, mas uma ação. Quando se coloca a filosofar, o filósofo envereda pelo
processo de conhecimento de algo, mais especificamente, o que podemos chamar de
realidade. A realidade é o todo no qual estamos imersos e do qual fazemos
parte.
Outro aspecto
fundamental a se compreender é que a filosofia é mais ampla do que um
experimento efetuado pela ciência moderna. Quando um cientista investiga um
fenômeno da natureza ou um comportamento humano, é necessário que haja controle
das variáveis ambientais de modo geral. Os resultados são válidos na medida em
que o experimento seja passível de ser repetido obtendo o mesmo resultado. A
explicação do recorte da experiência deve estar sob o crivo da repetição. Em
suma, a compreensão se dá na própria execução reproduzida tantas vezes quantas
forem necessárias.
No entanto, a vida
nunca apresenta um resultado idêntico em todas as vezes que se propõe a fazer a
mesma coisa. As pessoas, o ambiente, o tempo, enfim, tudo está em mudança. Essa
não é acessível a um juízo científico. Para que se encontre um dado comum a
todas as variáveis da vida, não se deve tomar a “régua”, mas a mente. A
imaginação possui a riqueza das variações possíveis de uma experiência. É nela
que a unidade ou universalidade é possível.
Para que seja
compreendido a partir de casos extremos, tomemos como exemplo a abordagem
científica e sua negação da experiência subjetiva religiosa. Isso não é um
demérito, mas simplesmente algo constitutivo dos limites e alcances do método
científico. Ora, toda experiência religiosa é subjetiva e as variáveis são
tantas quanto são as pessoas que a vivenciam. Diante disso, como proceder? Por
enriquecimento da imaginação. Pois, somente quando se pode imaginar as variantes
de uma experiência, algo que há em comum em todas elas pode ser percebido.
Geralmente não são os estados hormonais ou sinápticos que ditarão essa unidade
– o que seria acessível às ciências – mas a realidade objetiva desses fatos.
Outro exemplo: tomemos
a experiência dos primeiros cristãos. Cientificamente nenhum milagre pode ser
provado naqueles relatos. Curiosamente, os relatos de milagres não são
exclusividade do tempo que precedeu a escrita dos Evangelhos. Há relatos até
hoje. E não digo o gerado pela histérica manifestação de diversos cultos
contemporâneos que bem servem para enriquecer o “líder” da instituição. Digo
mais naqueles casos em que pessoas mudaram de vida e testemunharam a presença
de algo que os elevou.
Nesses dois casos,
poderia se questionar sobre a viabilidade de prova de verdade de tais
experiências. Como nenhuma pode ser reproduzida – nem pela ciência, nem pelos
crentes – ela pode se tida como falsa, ilusória, fruto do delírio, histeria
individual e coletiva etc. Todavia, são relatados. E quem as relata não está
tentando provar nada para ninguém. Ela apenas vivenciou. Dito isso, pode-se
perceber que essas experiências jamais poderão ser provadas, o que não as
invalida enquanto possibilidades da vida. Enquanto a ciência explica os fatos
pelos resultados obtidos na repetição de seus experimentos controlados, a
filosofia compreende a vida a partir da variabilidade e irrepetibilidade de
seus acontecimentos.
Portanto, é aí que
reside a necessidade de enriquecer a imaginação. Não de uma imaginação
pejorativamente ilusória. Trata-se de um imaginário enquanto possibilidades da
própria vida. Se houve, como os exemplos citados, relatos de milagre, em vão se
debaterá sobre a afirmação ou negação de sua veracidade. Resta, assim, perceber
a realidade em sua riqueza de possibilidades.
Se nos exemplos mais
radicais, a imaginação pode ser uma arma poderosa para compreensão da
realidade, no âmbito mais cotidiano ela o será igualmente e com maior
facilidade de aceitação. Para pensar em questões da vida como culpa, medo, dor,
sacrifício e amor as experiências próprias ajudam, mas não contemplam a rica
extensão de possibilidades nas quais estes termos podem ser compreendidos na
realidade.
Diante do que foi dito,
fica a seguinte reflexão: se queremos ser filósofos, sejamos antes assíduos
leitores da boa literatura. Comece pelos autores de seu idioma. Esses além de
enriquecer seu vocabulário de palavras e expressões que relatam a realidade,
explicam sua própria história, seu próprio povo, o que constitui sua cultura –
no caso, é claro, de autores de língua portuguesa que vivem no Brasil. Depois
de poder dizer sua realidade com maior riqueza de detalhes possíveis e de
compreendê-la até sem conseguir expressá-la, a leitura de textos filosóficos
ajudará nesse segundo passo de contemplação da realidade, da sua vida, da
existência.
*Prof. Dr. Miguel
Angelo Caruzo
www.atotalidadedavida.blogspot.com.br
Filósofo. Educador.
Escritor. Filósofo Clínico
Teresópolis/RJ
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