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Buen Camino*


Depois de atravessar o Caminho de Santiago andando, passei a gostar de caminhar. Solitário ou em grupo, nunca fiquei só, mesmo que não houvesse ninguém a meu lado. O pensamento se tornou meu companheiro de viagem. O corpo também assumiu papel determinante e passou a mostrar o valor de cada unha, cada dedinho do pé, cada quilo a mais por carregar.

Muitas vezes não havia ninguém para compartilhar o raiar do dia, uma cafeteria cheirosa escondida no meio do nada, uma cegonha trazendo comida para os filhotes. Batia fotos, mas por melhor que fosse a câmera, não conseguia transmitir a euforia daqueles momentos. Ficava com aquelas imagens e sensações guardadas em mim.

Houve uma noite especial em que me senti só. O peregrino russo tirou o violino da mochila e começou a tocar no pátio do albergue. Logo um casal de gregos passou a cantar e vários outros dançavam depois de quilômetros rodados e pés cansados. Ali, apesar de estar rodeado de pessoas, senti que estava carente e precisava de alguém especial para me abraçar,  segurar em seus braços e dançar. 

Outros dias, bastava cumprimentar alguém com um “buen camino” e logo estava enturmado  como se fossemos irmãos. Andávamos horas conversando, mesmo sem falar o mesmo idioma. Logo se aprende quem quer falar e quem quer ficar quieto na caminhada.

No inicio minha mochila pesava demais. Carregava segredos que já não me pertenciam, preconceitos que atrapalhavam, regras de moral com prazos de validade vencidos, rancores mofados, amizades ilusórias, casos mal resolvidos, frustrações enferrujadas, certezas duvidosas, dúvidas cruéis, grandes, médios e pequenos medos.  Foram importantes em uma época, agora dificultavam meus passos.

Tinha que esvaziar aqueles fardos inúteis para ir adiante. O problema é que não tinha certeza se eram tão inúteis assim, poderiam fazer falta um dia. Vacilava e não jogava nada fora. Caminhadas longas obrigam o caminhante a ficar dias inteiros grudado na mochila. É assim que se aprende o peso do supérfluo. As costas doíam, a coluna pesava, precisava tomar uma atitude. Sentei no chão, olhei para a mochila distendida, tirei as coisas de dentro, escolhi o que poderia ser dispensável.

Hesitei um bocado, mas finalmente comecei a descarregar. Poderia ter feito isto muitos anos antes no consultório de um analista, no entanto, o caminho é mais ecológico, acolhe aquilo que não  nos serve e entrega a quem necessita. O caminho é solitário e solidário. 

Depois de Santiago, fiz outras caminhadas. Em cada uma, planejava o roteiro, traçava as melhores trilhas, calculava a quilometragem diária, condições climáticas, hospedagem mais econômica. Tudo estudado com bastante antecedência e atenção. Meses antes já estava sonhando com a viagem. Fazia inclusive a contagem regressiva dos dias.  Mas quando lá chegava, me surpreendia pensando em minha casa, meu trabalho, minhas rotinas, meus problemas.  Fisicamente estava no caminho, mas não estava inteiro lá.

Por outro lado, cada caminhada serviu para despejar uma ou outra carga obsoleta residual. Não é fácil se livrar de tudo de uma só vez, mas progressivamente vai se tornando menos complicado e indolor. Este é um trabalho que ninguém pode fazer por nós, cada um tem sua hora, seu jeito de lidar com exclusões. Nem tudo que excluí foram coisas ruins. Às vezes é preciso deixar para trás coisas boas, sair da zona de conforto e abrir espaço para o desconhecido.

Um peregrino não nasce pronto, ele se faz. Não me considero pronto. Sei que ainda existem muitos caminhos por percorrer e muito por descarregar. Sei também que não vou ter pernas suficientes para andar por todos lugares que sonhei, mas preciso continuar. Meus passos me conduziram até aqui, preciso e quero prosseguir nesta jornada.

Agora, depois de tantos quilômetros rodados, pretendo iniciar uma nova caminhada. Um jeito diferente de andar.  Talvez nem precise levar cajado, botas, mochila, saco de dormir. Tampouco metas, lugar, dia ou hora para chegar.

Quero caminhar bem devagar, quase parando. O tempo e a distância serão mensurados ao contrário do habitual. Desapegar já não será necessário. Paradas valerão mais que passos. O acostamento será tão importante quanto a estrada. O apego será minha bússola e o amor meu norte.


Há muitas histórias por contar. Há tanto que quero saber. Há tanto por compartilhar. Quer andar comigo?  

*Ildo Meyer
Médico. Escritor. Palestrante. Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS

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