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Terceira margem*


Ser capaz de abandonar o âmbito da subjetividade [ou de negá-la em função de um novo lugar existencial] significa um passo um tanto arriscado. Há que lançar-se numa aventura, como se estivesse diante de um rio e, num instante de inquietude, lançar-se, saltar. Há que mudar de margem. E este mudar de margem não significa um salto para o outro lado do rio, para a outra margem. Lá também existe a promessa de um solo seguro, sustentador de vida, acalentador da subjetividade. Não! este salto deve ser mais ousado...deve ser o salto no infundado...na terceira margem, onde não há solo cristalizado sustentador da vida.

Falamos aqui do salto realizado pelo personagem de Guimarães Rosa no conto "A terceira margem do Rio”. A subjetividade estava encarnada na figura do Pai, um senhor até então ordeiro que um dia ousou abandonar o solo seguro da margem em que estava e empreitou-se na construção de um barco.

Mas o intuito do Pai com a fabricação da canoa não era atingir a outra margem existente do outro lado do rio, onde igualmente existia um solo seguro, uma ordem igualmente posta, a vida já acabada, cristalizada, realizada...ele saltou rumo a...lugar nenhum. 

'No salto, em que se deixa para trás toda e qualquer segurança da existência seja verdadeira ou presumida' [Heidegger]; um salto que tem como escopo não simplesmente acomodar-se melhor na margem em que está - a primeira margem - nem tampouco alcançar a margem do outro lado do rio - a segunda margem; mas sim em direção a uma que se diferencia das outras; que é o espaço onde não há vida já pronta, posta, realizada, acabada - que é o que ocorre em ambas as outras margens - mas sim a vida na gênese da presentificação, a vida no constante realizando que perpassa todo brotamento.

Lançar-se nesta aventura de entregar-se ao movimento das águas do rio não é uma atitude que se toma por meio de uma decisão no sentido de um planejamento, mesmo porque quem planeja é a subjetividade e, no entanto, é a ausência desta que permite o salto do Pai. Daí o saltar do Pai trazer como consequência o "estarrecer de toda gente", de toda a agente que insiste em avaliar a sua atitude com a cifra do pensamento que quer segurança e, para tanto, exige que cada ato possa ser calculado e a partir daí ter todas as suas possíveis consequências previstas no resultado do cálculo.

O saltar do Pai confunde-se com a ousadia de quem se descalça de toda essa esfera. E ele permanece sempre na terceira margem, realizando vida; realizando não no sentido de uma subjetividade que tem o poder de forjar a vida. Não! Não é o pai enquanto uma subjetividade que detém a vida...é a vida que se realiza nele, a vida é que eclode nele. A postura do pai não é uma de quem almeja um objetivo, um alvo. O alvo é ele mesmo, a vida é ele mesmo." - Carlos Roberto Guimarães, filósofo.

E, muitas vezes, é neste momento, nessa passagem, neste salto, que advêm os rótulos, as tipologias, os conceitos universalizantes e ali, naquele momento que seria apenas uma passagem, um instante de em que se cerra os olhos entre uma piscada e outra, que se cristaliza uma vida e uma existência ao ostracismo do igual e do padrão. Muitas vezes viver no ostracismo não é ser exilado, mas viver como um igual, sem identidade própria no meio da multidão. 

Sob a alegação de que precisa “conter” essa esteticidade para que não faça mal a si ou aos outros, ofende-se e impede-se a singularidade de se exercer.

Quando se pensa que a vida somente pode se dar sob os auspícios dos princípios de verdades sociais ou aceitos com tais, ou de um certo modo em uma linguagem interior de autorreflexão, impede-se o salto à terceira margem e cerra-se o espaço de livre trânsito existencial.

A tirania da saúde mental delimita, além daquilo que é e não doença e saúde, o como deve-se ser saudável. Assim, toda ação em direção da saúde mental é uma ação de ofensa à singularidade. Não há terceira margem na sociedade, pois não há compreensão do singular.

Pelo menos em processo terapêutico, ainda mais daqueles que estabelecem uma construção compartilhada com a filosofia clínica, ainda há a terceira margem, ainda há a possibilidade de ser aquilo que se é.

Se uma das tarefas implícitas (ou não tão implícitas assim) da filosofia clínica é defender a singularidade, que ela defenda a condição de possibilidade do mergulho não calculado em um mar onde não há margens, mas há o barco do qual tanto o partilhante quanto o filósofo clínico partilham. A terceira margem é aquela que não existe, aquela que não se materializa como margem, por isso não é e por isso sua fronteira é sempre móvel, delimitando, assim, não uma margem, mas um devir.

*Fernando Fontoura
Filósofo. Mestre em Filosofia. Doutorando em Filosofia. Filósofo Clínico. Professor Titular de Filosofia Clínica em Porto Alegre/RS e Rio de Janeiro/RJ
Porto Alegre/RS

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