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Ao pé da letra*


Uma clínica fundada exclusivamente no discurso literal pode ser areia movediça. O discurso da singularidade, se tomado ao pé da letra, desmerecendo os sentidos da autoria, pode significar uma sucessão de equívocos. Assim as armadilhas se multiplicam com o suposto saber especialista e sua classificação a priori.

Ao rascunhar alguns apontamentos sobre Filosofia Clínica, é importante recordar um de seus fundamentos: a ausência de tipologias, rótulos, classificações. Nessa abordagem vale mais o discurso Partilhante. Fonte de saber e matéria prima aos procedimentos do Filósofo.

O vocabulário de cada sujeito, mesmo quando usa as palavras de sua tribo, aprecia significados próprios, distorções, sentidos inesperados. Aqui se tem um refúgio de maior intimidade, por onde a pessoa exercita seus devaneios, desloca-se pela geografia de sua subjetividade. Nesse lugar descobre-se uma fonte de originais, longe daqui as expressões perdem a referência do autor.  

Trata-se de um protagonista numa história que lhe pertence. Assim a literalidade possui nuances, deslizes, desdobramentos nem sempre acessíveis ao primeiro olhar. Entre mostrar e esconder existe um teor discursivo inédito. Sua chave de acesso é a intencionalidade narrativa, por onde seu vocabulário anuncia as origens estruturais. Aqui o olhar e a escuta reivindica uma fenomenologia para acolher a realidade diante de si. 

Para visualizar a geografia da estrutura de pensamento, é impreciso transitar entre o dado literal e suas derivações, encontrar o eixo representativo da pessoa nas entrelinhas do dizer. Buscar uma aproximação com os conteúdos refugiados na palavra. Cabe ao Filósofo revisar os dados iniciais constantemente, atualizar a interseção, deslocar-se de seu lugar de conforto existencial, visitar o esboço de seu partilhante em vias de tornar-se. Talvez assim consiga emancipar o sentido de cada trama discursiva.

Inúmeros recados podem ser enviados pelos termos equívocos, incompletudes narrativas, desestruturação de raciocínio, algo de difícil compreensão, se distante do momento precursor. A disposição da intencionalidade pode ser uma alternativa para a tentação de ficar ao pé da letra. Aqui significa encontrar o autor do próprio discurso, sua fonte de transgressão e originalidades, deixando para trás a tentação das prévias certezas.

Ao pé da letra se tem algumas noções e muitas armadilhas interpretativas. Os sobressaltos da singularidade constituem uma zona de referência. Por essa rasura compartilhada nos discursos, a pessoa pode ampliar seus horizontes. Seu teor de incompletude discursiva acolhe invisibilidades, concedendo um nome ou apelido àquilo que se desconsiderava. 

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico não filiado a Anfic

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