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Mostrando postagens de abril, 2020

Divagações sobre a interpretação filosófica*

Se você pretende compreender o que Heidegger pensou sobre Heráclito, leia Heidegger. Mas, se quiser saber o que os estudiosos de Heráclito dizem sobre o pensamento dele, leia os estudiosos. Por fim, se quiser saber o que Heráclito disse, leia o próprio Heráclito. Como saberemos quem foi mais fiel ao filósofo estudado? Aquele que encontrou o dito no não dito, isto é, nas entrelinhas, nos subentendidos ou na condição de possibilidade do que pode ser dito? Ou aquele que disse algo sobre o texto que podemos comparar no próprio texto? O comentador mais fiel será sempre o comentador. Alguém que busca a fidelidade a partir de interpretações mais compatíveis e comprováveis pelo texto investigado. O passo de um pesquisador que comenta uma obra é tornar claro o que o texto aparenta manter obscuro. Isso é deixar claro o obscuro ou acréscimo de conteúdo? No caso de filósofos que, em última análise, tornam-se menos fieis aos textos que comentam, interpretam e criticam, buscar a comp

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"Havia muito tempo que a pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van Gogh que pintava, não linha ou formas, mas coisas da natureza inerte como se estivessem em plena convulsão" "(...) em todo psiquiatra vivo há um repugnante e sórdido atavismo que lhe faz ver em cada artista, em todo gênio, diante dele, um inimigo" "Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior que lhes permite, em todas as circunstâncias, enxergar mais longe infinita e perigosamente mais longe do que o real imediato e aparente dos fatos" "(...) Em face desta unânime sujeira, que tem de um lado o sexo e de outro, aliás, a missa, ou certos ritos psíquicos como base ou ponto de apoio, não existe delírio algum em prender doze velas acesas sobre o chapéu para pintar uma paisagem à noite" "A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença, e se não a provocou e criou, peça por peça, para se atribuir uma razão de existir; mas a psiq

As dores e suas réguas*

As recepções de hospitais costumam exibir um cartaz que informa o nível de prioridade no atendimento aos pacientes. É uma espécie de tabela de risco, com cinco níveis, desde ‘emergência’ até ‘pouco urgente’.   O atendimento imediato, por exemplo, contempla pacientes com parada cardiorrespiratória, em estado de choque ou com perfurações e hemorragia. O nível mais brando de risco (não urgente) contempla pacientes com dor leve, escoriações e pode levar horas e horas até um enfermeiro ou médico se ocupar do problema… Já complicações de saúde como crise de asma, dor de cabeça intensa, taquicardia e dor abdominal correspondem aos níveis intermediários: muito urgente, pouco urgente e urgente. Já pensou se as dores e desconfortos emocionais também pudessem ser medidos com uma régua tão objetiva? Dor de amor: emergência. Dor de saudade: muito urgente. Dor de decepção: urgente. Dor de tédio: pouco urgente. Dor de reprovação: pouco urgente. Outro sujeito poderia apresentar tabela diversa.

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"O poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento" "(...) Essa fala é essencialmente errante, estando sempre fora de si mesma. Ela designa o de fora infinitamente distendido que substitui a intimidade da fala. Assemelha-se ao eco, quando o eco não diz apenas em voz alta o que é primeiramente murmurado mas confunde-se com a imensidade sussurrante (...)" "Escrever jamais consiste em aperfeiçoar a linguagem corrente, em torná-la mais pura. Escrever somente começa quando escrever é abordar aquele ponto em que nada se revela, em que, no seio da dissimulação, falar ainda não é mais do que a sombra da fala, linguagem que ainda não é mais do que a sua imagem, linguagem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala, murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso impor silêncio, se se quiser, enfim, que se faça ouvir" "(...) o poeta é aquele que ouviu essa fala, que se fez dela o intérprete, o mediador, que lhe

Reflexões de um Pensador*

Amigos, Maquiavel é, com alguma freqüência, considerado o primeiro cientista político moderno: nas suas análises, ele teria sido um dos primeiros a rejeitar tanto uma concepção metafísica da natureza humana quanto uma filosofia da história metafísica e sistemática. O fiorentino teria procurado descobrir as leis da ação política no Estado em um raciocínio indutivo a partir da própria narrativa da história. Como suponho evidente, a negação de qualquer metafísica é uma tarefa impossível; a crença de que não se segue metafísica nenhuma é a metafísica mais tacanha. Mas existe algo no método da indução histórica que nos é útil: ela nos permite um certo grau de previsão acerca da direção das idéias que impulsionam a marcha humana nos tempos. * * * Adorno e Horkheimer mostraram, na Dialética do Esclarecimento, que os desenvolvimentos tecno-científicos criados para nos libertar da miséria e da opressão acabaram por criar um novo tipo de submissão: nós passamos a tomar a nece

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"No pensamento do sentido, chegamos propriamente onde, de há muito, já nos encontramos, embora sem tê-lo experienciado e percebido. No pensamento do sentido, encaminhamo-nos para um lugar onde se abre, então, o espaço que atravessa e percorre tudo que fazemos ou deixamos de fazer"  "(...) Se os grandes pensamentos sempre chegam com os pés do silêncio, muito mais ainda é o que acontece com a transformação da vigência de todo vigente" "Todo pensamento essencial atravessa incólume o cortejo dos prós ou dos contras" "Não foi Platão que fez com que o real se mostrasse à luz das ideias. O pensador apenas respondeu ao apelo que lhe chegou e que o atingiu" "(...) a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado, estocado, o estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado. Extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar são todos modos de desencobrimento" "(...) Nós

As Poéticas da Singularidade e seus inimigos***

Um novo paradigma deverá conter, necessariamente, contradições com aquilo que busca superar. A nova abordagem, ao emancipar práticas de cuidado e atenção à vida, também redesenha o mapa das problemáticas existenciais. É o caso da Filosofia Clínica, a qual, se fossemos pensar numa história das terapias, seria um capítulo pós Psicanálise. Ao contrário do que afirmam alguns próceres do saber instituído, praticado como uma forma hegemônica de entendimento da questão humana, a Filosofia Clínica desvincula o fenômeno da singularidade das amarras da tipologia, da verdade dos psicofármacos, cuja mordaça limita e condiciona sua expressividade, submetendo seu devir existencial a lógica dos manuais (DSM’s).    Uma das questões essenciais a crítica desses métodos da classificação, é o fato de sua interpretação do fenômeno humano acontecer à distância de onde eles ocorrem, ou seja, o sujeito singular compreendido em sua originalidade, se expressando em linguagem própria.   Em Filoso

Primeira Impressão*

O poema novo é dos insurgentes. Surge, subterrâneo e somente eles o escutam. Não parece poema, parece que todos podem escrevê-lo mas não o escrevem nem o escreverão nunca. Não tem cabeça e pé princípio ou fim definidos mas não são sem pé nem cabeça. Tem peito, plexo solar, e dois dedos de prosa quebrados. Só vai ser poesia, depois. Quando muitos terão lido relido e estabelecido. *Armando Freitas Filho in " O Livro das Palavras ". Ed. Leya. SP. 2013. 

A fuga de si mesmo*

“Estou a caminho com a minha visão”                   Walt Whitman Ainda penso em fugir nadando, ir mais longe do mal que nos atinge, a pandemia da ignorância. A última previsão é o mar revolto, água límpida da dor,   A liberdade não me dá asas nem oferece um barco de outono. Tenho que ir sem olhar para trás, adentrar o mar, Águas frias, correntezas fortes a me levar a outra consciência. A visão daqui, ruas silenciosas, casas em suas luzes guardam tudo que se pode imaginar, Então, tenho que sair voando janela afora, até a primeira correnteza. Mergulhar que nem pelicano, afundar a fúria do cotidiano, Atravessar todos os lugares possíveis, sem ver a insanidade. O povo está quieto, só Dylan na essência noturna ouço, Os dias dissimulam, viver no país está sendo um desafio.   A única arma será o vômito escárnio contra os que marcham com seus hinos. Vou cerrar as janelas, usar a máscara invisível e rumar ao porto mais próximo. Abril está fechado. *Prof.

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"(...) Esses grandes escritores do século XIX eram frequentemente refratários, subversivos, em oposição a toda a sua época e todo o seu grupo, contra toda a mediocridade humana. Ibsen, Nietzsche e Tolstoi eram desses, e foi com meu pai, não obstante, que li os três" "Eu sei que penetro no inexplicável, quando afirmo que a realidade (...) o conhecimento mais detalhado possível dos seres é nossos ponto de contato e nossos meio de acesso às coisas que se encontram além da realidade" "Eu havia escolhido Píndaro como assunto sem imaginar que me teriam sido necessários vinte anos de reflexão e de estudo para compreender o que significa a imagem do mundo que um Píndaro podia ter" "(...) em seguida era preciso também ter refletido bastante sobre as condições da própria vida, essas condições que não sabemos se representam uma ordem estabelecida ou um caos. Aos vinte anos, ainda não aprofundamos nossa experiência. É preciso ter quarenta ou mais

Sócrates e a Filosofia Clínica*

A Filosofia Clínica é uma atividade eminentemente prática, terapêutica e filosófica. O fato de não adotar ou elaborar um construto teórico que explique o homem, a natureza, o mundo ou deus não a torna menos filosófica. O filósofo clínico lida com o mesmo homem que os demais filósofos, só que com um fim diferente. E é na finalidade que a filosofia clínica acaba por utilizar um método que explica cada homem particular enquanto muitas outras abordagens filosóficas tratam do universal. Enquanto muitos filósofos excluem as particularidades em busca do que perpassa todos a fim de pensar o homem em si, o filósofo clínico tem a noção do que seja o homem em si quando recebe um em seu consultório, mas seu interesse é pelo conjunto de particularidades que constituem aquele ser humano e o faz distinto dos demais. Mas como toda filosofia posterior ao primeiro filósofo, Tales de Mileto, nasce em diálogo com seus predecessores, um dos inspiradores do método da clínica filosófica é Sócrates.

Anotações e Percepções de um Pensador*

"A própria natureza é o 'médico interior' que palpita em cada criatura desde o seu nascimento e que, por isso, sabe sobre enfermidade mais do que qualquer especialista que tem de limitar-se ao exame dos sintomas externos" "(...) Com a sua absoluta fé na alma universal da natureza, baseia sua convicção no fato de que ela é mais sábia doutora e não necessita do homem senão como seu auxiliar. Da mesma maneira que o sangue, sem ter escutado a lição de nenhum químico, fabrica antitoxinas, assim também o organismo, sustentador e organizador de si próprio, sabe, a maior parte das vezes, dar fim a enfermidade que o aflige, valendo-se dos próprios recursos"  "(...) Visto de fora, o sistema é incompreensível, quase ridículo na sua simplicidade: médico e enfermo sentados amigavelmente frente a frente, limitando-se aparentemente a uma agradável palestra. Nada de raios X, nada de instrumentos registradores, nem de lâmpadas de quartzo, nem sequer um simp

Reflexões de um Pensador*

Num momento de crise, como a situação de pandemia em que vivemos, muitos desejam uma orientação a respeito de como devem agir, mas não sabem em que confiar Nesse contexto, leio aqui e ali pessoas inteligentes nos exortando a "seguir a ciência". Desculpem, amigos, mas eu não sigo o que eu não sei o que é. * * * Foi o Rubem Alves que, no seu livro "Filosofia da Ciência", escreveu que "o cientista virou um mito" e que "todo mito é perigoso". De fato: a idéia de uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é mitológica. O ethos científico - que, como descrito por Merton, corresponde aos valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo organizado - é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. "Confiar na ciência" correspon

Fragmentos Filosóficos, Antropológicos, e algo mais*

"(...) Donde bem bruscamente essa mobilidade inesperada das disposições epistemológicas, o desvio das positividades umas em relação ás outras, mais profundamente ainda a alteração de seu modo de ser ?" "A que acontecimento ou a que lei obedecem essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmo modo e que, no interstício das palavras ou sob sua transparência, não sejam mais as riquezas, os seres vivos, o discurso que se oferecem ao saber, mas seres radicalmente diferentes ?" "O que erige a palavra como palavra e a ergue acima dos gritos e dos ruídos é a proposição nela oculta" "Os signos não tem, pois, outras leis, senão aquelas que podem reger seu conteúdo: toda análise de signos é, ao mesmo tempo e de pleno direito, decifração do que eles querem dizer" "(...) uma coisa pode ser absoluta sob certo aspecto e relativa sob

O deserto e o dilúvio*

Sonhava ficar em casa de pernas pro ar durante três meses enquanto é jovem e sadio? Pode comemorar. Seu pedido foi atendido. Você está livre do trabalho, da escola, da universidade. Agora tem tempo de sobra pra fazer o que quiser. Não está doente, tampouco aposentado e se tiver sorte ou for precavido, seus rendimentos ainda estão garantidos. Só que não. Você está doente, mas não sabe. Os sintomas estão saltando aos olhos e você não vê ou se nega a enxergar. Pensa que está saudável e assintomático, mas está enganado. Não estou falando do coronavirus, desta praga vamos nos salvar. A sua doença é mais grave, assumiu uma forma crônica e a única maneira de se curar talvez seja o confinamento obrigatório.   Hipócrates, o pai da medicina, dois mil anos atrás prescrevia que antes de curar alguém é preciso perguntar se a pessoa está disposta a desistir das coisas que a fizeram adoecer. Faz de conta que seu filho adora sorvete, mas precisa parar de comer porque está ficando obeso. Co

As seis cordas*

A guitarra faz soluçar os sonhos. O soluço das almas perdidas foge por sua boca redonda. E, assim como a tarântula, tece uma grande estrela para caçar suspiros que boiam no seu negro abismo de madeira. *Federico Garcia Lorca

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