O que é a Filosofia Clínica?
A resposta geralmente
adotada pelos filósofos clínicos é: “a Filosofia Clínica é a filosofia
acadêmica aplicada à terapia”.
Esta resposta é boa. E
não é.
É uma boa resposta porque
é exatamente isso que a Filosofia Clínica faz: aplica a filosofia da tradição
ocidental, a filosofia acadêmica, à terapia.
Por outro lado, é uma
resposta abrangente demais. Afinal, o conjunto da “filosofia acadêmica” tem uma
quantidade muito grande de elementos, que podem ser tão diferentes entre si
quanto podem ser diferentes variadas espécies de, digamos, frutas.
Por essa razão, a
afirmação de que “a Filosofia Clínica é a filosofia acadêmica aplicada à
terapia” é inútil. Aos olhos do leigo – e mesmo de muitos estudiosos – a
filosofia é um emaranhado de teorias contraditórias, quando não bizarras;
parece que qualquer coisa pode ser filosofia, e que filosofia pode ser qualquer
coisa.
Mas isso não é verdade. A
filosofia tem um fio condutor muito claro. Para explicar isso, vou fazer uma
analogia com as frutas. Há frutas de todos os tipos: mais doces, mais azedas,
até mais amargas. Há frutas grandes, pequenas, suculentas, mais secas. Há
frutas com casca grossa e fina, com sementes enormes ou minúsculas.
Todas as frutas têm,
todavia, algo em comum: são os recipientes nutritivos das sementes usados pelas
espécies para atrair os animais, que os levam para longe – o que faz com que
suas sementes sejam espalhadas pelo mundo.
Por isso, não há frutas
sem sementes. Se não tiver semente, não cumpre a função de fazer nascer um novo
pé de fruta, e não pode ter nascido, visto que um exemplar de uma espécie
frutífera necessariamente foi uma semente dentro de uma fruta antes de nascer
como planta.
Do mesmo modo que as
frutas, há filosofias de todos os tipos.
E como o conjunto das
frutas pode ser definido por ter sementes, o que remete à finalidade de fazer
nascer novos exemplares da espécie, da mesma forma o conjunto da filosofia pode
ser definido pelo seu método e pela sua finalidade.
O método da filosofia é
racional argumentativo. A filosofia ocidental, que é a filosofia acadêmica,
nasce com a especificidade de exigir de seus participantes a concordância com
regras racionais de argumentação, para que todos os indivíduos racionais, que concordam
com as mesmas regras, possam acompanhar a argumentação e contribuir para que se
possa chegar mais próximo ao objetivo.
Mas qual o objetivo da
argumentação na filosofia? Qual a finalidade última de toda a discussão entre
os filósofos?
Toda filosofia tem, em
última instância, a finalidade de ser um instrumento para que o ser humano
investigue o sentido da existência.
Não o sentido da vida,
não o sentido da morte, não o sentido da liberdade, ou da sociedade, ou de
qualquer outro conceito.
Mas o sentido da
existência. Do ser humano? Do mundo? Do universo? Do Cosmos? De Deus? Sim,
desde que colocado na seguinte perspectiva: a filosofia é a procura, realizada
por um ser que existe, que está onde existe, pelo sentido da existência de si e
do sentido da existência de onde existe.
A pergunta fundamental de
qualquer filosofia, a interrogação que está por trás de todos os livros de
todas as escolas de todos os tempos da filosofia, é: “por que existe, quando
poderia não existir?”, “por que há, quando poderia não haver?”, “por que é,
quando poderia não ser?”.
Os instrumentos variam;
mas a pergunta fundamental é essa, mesmo para as escolas que defendem que a
pergunta não tem sentido.
Então a Filosofia Clínica
é uma terapia voltada para a busca pelo sentido?
Não e sim.
A Filosofia Clínica não é
uma terapia que considera que todos tenham que encontrar, subjetivamente, O
Sentido para a existência.
Da mesma forma que para
algumas linhas filosóficas a pergunta pela busca pelo Sentido tem significado,
e para outras linhas filosóficas a busca pelo Sentido não tem o menor
significado e é uma pergunta absurda, há pessoas para as quais faz sentido
buscar um Sentido e para outras não faz sentido buscar um Sentido.
Seria uma violência a
tentativa de enxertar uma busca pelo Sentido em alguém que considera essa busca
absurda. O enxerto de um elemento potencialmente poderoso assim na estrutura
existencial de alguém que considera esse elemento absurdo seria catastrófica –
causaria uma desestruturação indizível.
Contudo, sob outro
aspecto, a Filosofia Clínica é uma terapia que busca o sentido do ser – caso o
sentido do ser seja traduzido como a representação formal do conjunto de
elementos significativos da estrutura existencial da pessoa, aquilo a que os
filósofos clínicos chamam a “Estrutura de Pensamento” do indivíduo.
A filosofia acadêmica
fornece aos filósofos clínicos os instrumentos (pela lógica, pela
fenomenologia, pela analítica da linguagem) para a construção da Estrutura de
Pensamento formal da pessoa. E aí se pode dizer que o filósofo clínico que
produziu a Estrutura de Pensamento de alguém tem o mapa formal do sentido de
sua existência.
Portanto, nesta acepção,
a Filosofia Clínica é uma terapia voltada para a busca pelo sentido, ou seja,
pelo sentido da existência subjetiva da pessoa que com o filósofo clínico
partilha seu mundo. Mas esse sentido da existência subjetiva da pessoa pode não
ter (assim como, evidentemente, pode ter) o caráter de uma busca pelo Sentido
da Existência.
Isso porque cada pessoa é
diferente da outra. Cada uma tem uma Estrutura de Pensamento única no mundo.
Cada pessoa tem uma combinação exclusiva de elementos, que variam não apenas
quanto aos diferentes tipos, mas também em relação à importância, à ordem, à
circunstância e às relações de cada elemento com cada um dos outros elementos
da Estrutura de Pensamento.
Por essa razão, não é
possível considerar que existe um modelo de “normalidade” à qual todas as
pessoas ditas “anormais” devem se conformar. Se existisse um modelo de
“normalidade”, em que ele seria baseado? Na “normalidade” do criador da teoria
terapêutica? Essa hipótese é evidentemente absurda, visto que não há no mundo
duas pessoas que compartilhem uma mesma estrutura existencial – e a tentativa
de aplicar indiscriminadamente elementos de uma estrutura de uma pessoa, pela
força da persuasão, da insistência ou de recursos mais sutis, na estrutura de
outra pessoa pode causar graves conflitos existenciais.
Portanto, não há “normal”
e “patológico” na Filosofia Clínica. A Estrutura de Pensamento formal de uma
pessoa é compreendida pelo filósofo clínico como um mapa que indica os pontos
de sustentação e de tensão, de conforto e de explosão, de harmonia e de
conflito entre os elementos que fazem parte da estrutura existencial da pessoa.
E não há mapa “certo” ou “errado”, pois nem toda tensão, explosão e conflito é
ruim na estrutura de pensamento – podem mesmo ser elementos sustentadores para
algumas pessoas, elementos que não podem ser tocados sob risco de
desmoronamento de toda a existência.
Se não há mapa “certo”
nem “errado”, qual o papel do filósofo clínico?
O filósofo clínico não
sabe responder essa pergunta até o início do processo da terapia. Isso porque
cada pessoa tem uma diferente motivação ao se encaminhar para ela. E muitas
vezes a motivação inicial que leva a pessoa à terapia não é a motivação última,
que vai sendo descoberta no processo.
O filósofo clínico usa
seus instrumentos para ajudar a pessoa a resolver o que a leva à terapia.
E como o processo da
terapia ocorre?
A primeira tarefa do
filósofo clínico é a formação da “Estrutura de Pensamento” formal da pessoa.
Isso começa com a narração da história da pessoa pelas próprias palavras da
pessoa. Esse processo pode levar algum tempo, pois é importante, por dois
motivos, que a pessoa conte como vê a sua história.
O primeiro motivo é que o
filósofo clínico precisa conhecer como a pessoa relata suas circunstâncias
históricas, para que possa compreender os pontos de referência da Estrutura de
Pensamento. Aqui, o filósofo clínico usa a Fenomenologia.
O segundo motivo é que o
filósofo clínico precisa entender como a pessoa utiliza sua linguagem, pois a linguagem
revela o modo como os elementos da Estrutura de Pensamento relacionam-se entre
si. Aqui, o filósofo clínico usa a Analítica da Linguagem.
E depois que o filósofo
clínico conseguiu produzir uma Estrutura de Pensamento formal da pessoa?
Ele vai saber exatamente
o que são, onde estão, como estão relacionados, os pontos que levaram a pessoa
ao desconforto existencial que a fez procurar a terapia.
Mas não basta dizer isso
à pessoa. Afinal, é possível mesmo que a pessoa já saiba disso. Ou que não faça
diferença nenhuma para a pessoa saber ou não, pois não saberia o que fazer com
esse conhecimento.
Depois que o filósofo
clínico produzir a Estrutura de Pensamento formal da pessoa, terá conhecido um
conjunto de armas que ela muitas vezes nem sabe que tem, ou não sabe como usar
eficientemente.
Essas armas são os modos
como a pessoa lida da forma mais eficiente com seus problemas.
Muitas vezes a pessoa
aprendeu, por qualquer razão, que o jeito certo de lidar com um determinado
problema é de tal e tal maneira – maneira que, eventualmente, não corresponde à
sua Estrutura de Pensamento, e que, por alguma razão que a pessoa não consegue
explicar, sempre dá errado com ela.
A pessoa pode nunca ter
aprendido – e, na verdade, quase nunca aprendeu – a usar os modos próprios à
sua Estrutura de Pensamento particular para lidar com os problemas com que se
depara. A pessoa pode nunca ter aprendido a usar as suas armas mais poderosas,
que são exclusivas dela, e que, por isso, provavelmente ninguém a ensinou a
usar.
Justamente as armas que o
filósofo clínico identificou na Estrutura de Pensamento.
Por essa razão, o
filósofo clínico pode ensinar os modos mais eficientes que a pessoa tem para
lidar com seus problemas. E cada pessoa tem modos diferentes para lidar com
dificuldades que são próprias só dela, o que faz com que cada processo
terapêutico seja completamente diferente de todos os outros.
Cada processo é
diferente, assim como o estudo de cada filosofia acadêmica é diferente. Cada
filósofo estudado pela tradição acadêmica coloca questões e problemas
diferentes, usa métodos diferentes e chega a conclusões diferentes. O trabalho
do estudioso de filosofia é saber como colocar com propriedade essas questões e
problemas, saber usar os métodos específicos a cada filósofo estudado e
compreender o alcance de suas conclusões – cada filósofo com sua
especificidade, sua originalidade, sua diferença.
Não é diferente do que a
Filosofia Clínica faz com as pessoas que buscam a terapia. O filósofo clínico
vê cada pessoa como se visse um filósofo importante a ser estudado.
Ele estuda essa pessoa
com cuidado e atenção para que o mapa de elementos da existência dessa pessoa
seja bem constituído. Nesse mapa, ficam evidentes os modos como a pessoa pode
resolver melhor os seus problemas, para que o filósofo clínico possa ensinar a
pessoa a usar as suas próprias armas – em outras palavras, para que o filósofo
clínico possa ensinar a filosofia da pessoa a ela mesma.
* Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico.
Teresópolis/RJ
** Este texto foi preparado para uma apresentação para leigos a respeito da Filosofia Clínica. Por esta razão, foram evitados termos técnicos da FC, que seriam ambíguos ou incompreensíveis se utilizados sem a devida tradução (que, no contexto, seria cansativa e desnecessária).
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