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Resenha crítica da obra: "Poéticas da Singularidade"*

STRASSBURGER, Hélio. “Filosofia Clínica, poéticas da singularidade”. Rio de Janeiro: e-papers, 2007. 116 p.

O livro de Hélio Strassburger expõe suas experiências fazendo um relato singular da filosofia clínica por um terapeuta experiente e sensível. O autor percorre em vinte e seis pequenos textos os momentos fundamentais da relação clínico-partilhante e das singularidades desse processo, valendo-se do estilo poético.

A filosofia clínica é apresentada como “escrita em reciprocidade de compartilhar (...) aquilo que, para muitas pessoas, é o mais sagrado, sua história de vida” (p. 7). Essa é sua forma de reconhecer que existir é coexistir. É sobre esta relação compartilhada que o autor descreve “uma fenomenologia do fazer clínico que esboça encantamentos indizíveis ao olhar de senso comum” (p. 8).

Evidencia-se a sua convicção de que a atividade clínica não pode ser bem descrita com linguajar comum, só a poética alcança seus recantos mais escondidos. O propósito da clínica é promover uma “interação transformadora com as crises” (p. 9). Ela é uma forma de indicar novos roteiros de vida para pessoas cujos choques na estrutura de pensamento tornaram a vida difícil e sem sentido.

O início do processo revela a aproximação de mundos diversos, terapeuta e partilhante vivem realidades distantes porque focam a circunstância de maneira diferente. Hélio assume um pressuposto da fenomenologia, não há um mundo em si, mas vários de acordo com a atitude existencial adotada pelos sujeitos. Na fase inicial do processo é preciso cuidado para não reduzir o mundo do partilhante a uma tipologia rígida ameaçando sua singularidade, pois como o homem é existência isso significa que sua estrutura de pensamento constitui uma ótica da existência.

O espírito do encontro é a abertura à mudança, o cuidador não reduz as alternativas do partilhante. “O ir e vir das interseções, afirma o autor, aprecia roteiros para a desconstrução das antinomias da inflexibilidade” (p.13). É este encontro que promove a desconstrução de conflitos íntimos incompreensíveis “nos paradoxos das fórmulas prontas” (p. 14).

O reconhecimento da singularidade existencial é o aspecto mais marcante do início do processo. Em linguagem fenomenológica isso significa que o homem é um projeto único e seu ter que ser o torna histórico. A habilidade do cuidador leva o partilhante a lhe apresentar sua história de vida da forma que ele julgue mais fácil expor suas intimidades mais fundas, suas dores mais escondidas. “Vestígios dessa raridade existencial se antecipam nos primeiros encontros, através do sofrer em pedidos de ajuda” (p. 15).

Nesse momento, explica o autor, a atenção se concentra na reciprocidade cuidador – partilhante. O propósito da acolhida existencial é permitir “a ruptura com as estruturações de onde tirava forças para limitar as possibilidades de melhor viver” (p. 16). Ao ser acolhido, o partilhante encontra alternativas para reconstruir sua vida, superando os nós existenciais nascidos nos conflitos de sua estrutura de pensamento. O terapeuta acompanha a jornada única do partilhante, pois o viver é “um jeito único na subjetividade de cada pessoa” (p. 19). O ambiente de liberdade no compartilhar de experiências “nunca se confunde com o artificialismo do laboratório” (p. 20). O desafio da relação será então a de favorecer o acesso do partilhante a seu mundo, mesmo que ele pareça absurdo, pois “a vida busca escrever seus melhores roteiros a partir de sua existência” (p. 22).

O mundo do partilhante começa a se abrir com as primeiras queixas denominadas de assunto imediato. Quanto mais o partilhante encontra acolhida ao expor sua queixa inicial, quando melhor compreendida sua história de vida e mais bem elaborado o planejamento clínico, mais ele muda.

Para Hélio sua transformação é atribuída à magia das interseções, mas isso não significa ausência de uma técnica precisa de ajuda. Os encontros expõem o mundo do partilhante e aí se encontra o reflexo de suas origens. O autor reconhece que as experiências das fases iniciais da vida são muito intensas e se refletem no decorrer da existência, confirmando o que as principais escolas de psicologia dizem sobre as aprendizagens na infância. Assim, os medos começam a se mostrar numa viagem para trás, para lugares existenciais escondidos. Ele diz que “a insegurança e o medo podem descortinar temores de raiz mais funda, alimentam-se com o cristalizar dos sonhos em abstrações cada vez mais distantes” (p. 28).

Os encontros clínicos expõem paisagens de um passado distante que, apesar de longínquos, revelam a vida mesma. Essa perspectiva de análise é fundamentalmente fenomenológica, reconhece que a existência é situada e que o estar presente no mundo possui um sentido temporal. A ida a lugares distantes é também, uma viagem ao passado e a lugares que a consciência conserva vivos.

No passado as lembranças se modificam no que o autor denomina feitiço do tempo e que é a forma como o “viver contido re-inaugura-se na insanidade normalizada dos dias” (p. 32). O encontro com o passado permite re-significar experiências e romper os choques formados na estrutura do pensamento. Qual o sentido que tem um fato? Depende das possíveis atitudes do sujeito tendo em vista sua estrutura de pensamento, se mais ou menos emotiva, mais ou menos inversiva, mais ou menos epistemológica, etc.

O encontro clínico é revelado como troca de impressões humanas nem sempre traduzíveis pelas palavras. Ao comentar a expressividade do silêncio, o autor explica porque a filosofia clínica não se resume à analítica de linguagem, uma vez que o silêncio do encontro propicia uma reconstrução de choques inalcançados “pela lógica do dizer” (p. 35).

E isso é fundamental na técnica porque o silêncio traduz “o pressuposto para a conexão com as instâncias mais profundas do viver, lá onde a contemplação do livre curso das idéias encontra-se com a eterna novidade de si mesma” (p. 35). E textos de Clarice Lispector são empregados para traduzir encontros onde o que se sente não é dito em palavras. A linguagem é um caminho possível para o íntimo, mas é só uma das maneiras de chegar lá. “As palavras podem estabelecer vínculos de aproximação ou distanciamento entre as pessoas” (p. 40).

O terapeuta descobre assim uma das mais maravilhosas funções da poesia que é a de deixar aparecer o mundo íntimo da pessoa quando a linguagem precisa e objetiva empregada pela ciência positiva e a analítica de linguagem não parece a melhor para traduzir o que o partilhante quer dizer. Por isso ele faz referência a Heidegger e ao papel da linguagem que “longe de abandonar o lugar da poesia, (...) permite que toda movimentação do dizer seja reconduzida para a origem sempre mais velada” (p. 44). Essa ida ao mundo do outro ganha uma feição mais claramente fenomenológica quando a referência a Heidegger se completa com as teses de Merleau-Ponty.

O autor afirma que Merleau-Ponty diz existir “uma maneira de introduzir o outro como incógnita em sendo a única que considera sua alteridade e a explica” (p. 47). O encontro com o mundo do outro pode ser comparado a um ir atrás do espelho até os sonhos e símbolos pelos quais ele se expressa. O autor menciona também Rubem Alves para quem “não sabemos o nome de nossos desejos mais profundos. Resta-nos, segundo ele, suspirar suspiros que são profundos demais para palavras” (p. 49). O partilhante pode encontrar muitas formas de se expressar e “criar uma linguagem sua e se expressar no dizer sem palavras” (p. 53).

A intuição fenomenológica é a forma do autor reconhecer o fato primitivo da consciência, isto é, pensar a vida do sujeito como abertura ao que não é o sujeito. O que não é o indivíduo é, no mínimo as coisas e pessoas que o rodeiam e a implicação sujeito mundo assim expressada por Hélio: “deixamos a verdadeira essência das coisas falar imediatamente para nós, deciframos a autêntica assinatura das coisas” (p. 53).

No caso do clínico a intuição fenomenológica se manifesta nos projetos existenciais dos partilhantes, cujas partes se organizam e reorganizam como as figuras do caleidoscópio. A terapia permite que os elementos do projeto possam se combinar com risco reduzido para a pessoa e seus próximos. Hélio explica: “em terapia pode-se ir bem longe sem sair do lugar. Em alguns casos, chegar até onde o interseção permita. Para, quem sabe depois, voltar e saborear a renovação dos antigos refúgios” (p. 62).

A clínica igualmente propicia descobrir vivências escondidas no dia-a-dia. “Na magia do desvendar-se íntimos distanciamentos podem se evidenciar singularidades calcadas pelo não-ver das cotidianas cegueiras” (p. 63). O espaço do encontro clínico-partilhante cria o ambiente para a expressão do que é exótico na vida e é esquecido pela própria pessoa.

E esse encontro, pelas dificuldades de caracterização, não mereceu ainda um relato preciso do exercício do cuidador. Trata-se, contudo, de atividade com objetivo definido “construir indícios aos novos endereços existenciais para onde a pessoa encaminha as suas buscas” (p. 77). Os endereços existenciais traduzem chamados íntimos que Ortega y Gasset denominava vocação.

A revelação do mundo do partilhante, ainda que mostre muita singularidade, não é comparável ao que a psiquiatria denomina loucura. Sobre o assunto o autor faz referência ao trabalho de Michel Foucault e a função da loucura que o filósofo francês diz ser “aproximar-se tão perto quanto possível da razão” (p. 81). Sobre a imagem que o autor constrói da loucura reflete “aspectos de um mundo desconhecido pelo próprio sujeito. Uma espécie exilada na própria casa” (p. 85). A loucura é um processo de re-significação que a pessoa realiza, mesmo que sem sucesso.

A filosofia clínica é apresentada nesse livro como cúmplice do bem viver, forma de obter uma vida com mais qualidade pela superação dos nós existenciais que nascem dos choques presentes na estrutura de pensamento do partilhante. Não se trata, pois, de “normalizar ou curar” (p. 95). A técnica é apresentada como uma forma de terapia compreensiva que não se mostra nos antigos paradigmas. A preparação do filósofo clínico para realizar este procedimento é específica, inclui aulas presenciais, estudo de textos, pré-estágio e prática de atendimento.

A filosofia clínica para o partilhante é a oportunidade de rever a vida, experimentar devaneios, buscar compreender a si próprio. Buscar nexo onde ele parece não existir.

O livro de Hélio Strassburger não é uma introdução à filosofia clínica, também não é uma exposição objetiva ou detalhada da técnica. É um relato íntimo de vivências terapêuticas apresentadas em linguagem poética, nem sempre de simples compreensão. É, sobretudo, uma revelação luminosa do encontro pessoal e das riquezas dos mundos singulares. O acesso à singularidade pessoal é sempre um desafio da clínica.

A obra foi construída sobre os pressupostos fundamentais da fenomenologia existencial como procuramos evidenciar, num diálogo que aproxima Heidegger e Merleau-Ponty.

*Prof. Dr. José Mauricio de Carvalho

Foi Chefe do Departamento de Filosofia da UFSJ (Universidade Federal de São João del Rei/MG). Filósofo. Psicólogo. Escritor. Filósofo Clínico.

São João del Rey/MG

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