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Visão de mundo e representação*

Vivemos num tempo de crise. Todavia, a crise de nosso tempo não tem quatro anos, nem onze, nem vinte e três ou sessenta: tem quatro séculos. Consideramos a crise deste momento mais séria e mais urgente que muitas outras não porque ela seja realmente mais séria e mais urgente, mas porque ela é 𝘯𝘰𝘴𝘴𝘢 . A nossa crise é a conseqüência mais evidente de um processo de transformação da visão de mundo na Modernidade: antes a realidade, concebida como um Cosmos, multiplicava-se em diversos campos ontológicos – reunidos na compreensão humana por meio dos símbolos. Assim, todos os objetos do mundo eram ontologicamente complexos: participavam de vários campos do real, e por isso não podiam ser compreendidos a partir de uma única perspectiva. É esta a razão pela qual o ideal de sabedoria não era a super-especialização do intelecto, mas a síntese de vários campos numa única inteligência. Contudo, os filósofos modernos – e os cientistas, e depois quase todas as pessoas – passaram a enxergar
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Uma perspectiva prática da recíproca***

  A metodologia da Filosofia Clínica contempla elementos que constituem a estrutura de pensamento e os modos de agir de cada pessoa. Alguns elementos, como a inversão e a recíproca, podem estar tanto na espacialidade intelectiva quanto nas ações do indivíduo. Simplificadamente, inversão é o movimento de trazer o outro ao seu próprio mundo, enquanto a recíproca é ir em direção ao outro. No espaço terapêutico, a recíproca pode fazer parte da qualificação da relação terapeuta/partilhante, sendo utilizada pelo terapeuta que escuta, acolhe e, principalmente, se isenta de suas perspectivas do mundo e das relações diante do discurso existencial do partilhante. Assim, considera essencialmente o outro para possibilitar o espaço da construção compartilhada. Em um esboço preliminar, através do discurso existencial do partilhante, a recíproca pode aparecer como tópico importante da estrutura de pensamento. Com a evolução do tempo terapêutico, através do acesso à historicidade, às circunstâncias, à

Antes de morrer, viva!*

  Atenção! Este artigo pode ser lido por pessoas de todas as idades, mas dependendo da faixa etária, despertará interesses diversos e quem sabe até antagônicos. Jovens não têm ideia e nem imaginam como será sua velhice, muito menos a morte. Já os velhos, mais sábios e experientes, convivem com a proximidade da morte mais realisticamente. Embora possa parecer paradoxal, este artigo é dedicado a todos aqueles que não querem envelhecer. Jovens, meia-idade e idosos, leiam enquanto é tempo. Um dos grandes sonhos da humanidade é a descoberta da fonte da juventude. Fortunas e vidas foram e continuam sendo gastas nesta procura. Milhões de pessoas foram enganadas com promessas de retardar, parar ou reverter o envelhecimento e a ilusão da vida eterna. Nas bases científicas atuais, imortalidade ainda é uma impossibilidade. Mesmo eliminando todas as causas de morte relacionadas ao envelhecimento que aparecem nos atestados de óbito, ainda assim ocorreriam acidentes, homicídios, suicídios e os p

Silêncio que acolhe*

Gostaria de relatar uma ida minha ao Teatro, quando a noite terminou com forte emoção e muitas reflexões. Era uma noite fresca em São Paulo, dia 26 de fevereiro de 2011, o Teatro Tucarena. A peça, Dueto Para Um, uma adaptação de um dos textos mais conhecidos do inglês Tom Kempinski, inclusive virou filme em 1986 dirigido por Andei Konchalorsky e roteirizado pelo próprio Tom Kempinski, no Brasil foi batizado de Sede de Amar tendo a atriz Julie Andrews no papel do personagem Stephanie. Texto bem escrito, diálogos fortes, a história verídica conta a trajetória da renomada violoncelista inglesa Jacqueline Dupré, que no auge da sua carreira profissional, vê-se impedida de exercer sua vocação por adquirir uma doença degenerativa. A violoncelista vivia em Londres, concertista de renome internacional, era um dos gênios da arte interpretativa do séc. XX segundo João Carlos Martins. Casada com o pianista e maestro Daniel Baremboim é por ele incentivada a procurar uma ajuda terapêutica para cuida

A Terra se move? Considerações da filosofia e da filosofia clínica*

Em 1934, Edmund Husserl escreveu um texto intitulado “A Terra não se move. Investigações básicas sobre a origem fenomenológica da corporeidade, da espacialidade da Natureza no sentido científico-natural primeiro. Necessárias investigações iniciais” (trad. livre). Não se trata, como se pode inferir apressadamente, de uma negação do movimento da Terra, da ciência moderna, muito menos de um terraplanismo ou alguma bobagem dessa ordem, tão vigente em nossos dias. A proposta husserliana é nos fazer pensar nossa experiência originária (no sentido ontológico) da Terra. Sob o ponto de vista da ciência, sabemos diversas coisas sobre nosso planeta e o universo: está em um Sistema Solar, na Via Láctea, é um corpo ao lado de incontáveis outros e possui movimentos de rotação e translação.   Mas, a fenomenologia filosófica nos leva a experiência originária, às nossas referências imediatas a partir das quais nos guiamos, vivemos e somos. Nessa experiência imediata, a Terra é um ponto imóvel que

Educação para a Existência*

Nada é real, tudo é convenção. Se o real é convenção e a convenção está dentro do real, a convenção também é real, assim como nada é convenção e tudo é real.                                                        Rogério de Almeida               Somos muito mais que a fronteira do que está submerso na consciência. Consideramo-nos indivíduos pós-modernos.   Contudo, se formos honestos conosco, admitiremos o quanto somos convencionais.          Precisamos ver essa área de nossa existência como um ponto de partida, um meio de enxergar nosso padrão convencional, repetitivo e responsabilizar-nos pela criação de uma nova realidade. O nunca experimentado, o desconhecido, o alheio, são razões que geram a universalidade presente no inusitado.          Temos a inclinação de manter o nosso modo em tudo e, quando outro alguém nos brinda com uma novidade, pensamos com nossos botões: não dará certo, a minha maneira é a melhor; por que mudar? A resistência ao singular é prova cabal de nosso r

Fenomenologia do rosto e suas sintonias*

  Há rostos inesquecíveis, inapagáveis, sobretudo, quando escolhemos um ponto de partida inspirado numa perspectiva levinasiana. E para um poeta - esse aprendiz em especial - no rosto de qualquer ente pode habitar a apresentação de si próprio por excelência ou por denúncia que sempre transborda na direção do outro. Sim, no rosto e não nas máscaras apresenta-se a essência de qualquer entidade, de qualquer manifestação. E aos rostos inesquecíveis, toda a minha gratidão assim como estende-se também aos rostos esquecidos, uma vez que duraram tão somente o prazo devido e necessário. Superar apegos e aceitar partidas em paz é uma grandeza fundamental que só depende da nossa própria responsabilidade e capacidade para desenvolver empatia. E quando tudo que passou, passou convertendo-se em gratidão as cumplicidades necessárias já foram consagradas nas transgressões e transcendências elaboradas e concluídas de forma sublime e irreversível. E se já estamos bem diante da consciência de que tud

O que é terapia?*

  Qual a diferença de um conselho de um amigo para uma abordagem terapêutica? Pode-se definir a terapia por um processo de apreensão e compreensão do outro além daquilo que ele apresenta. “Além” como? Toda metodologia terapêutica procura apreender e compreender o que o outro expressa em uma linguagem não-comum ou através da linguagem comum chegar a modelos de compreensão que o próprio indivíduo que se expressa não conhece desta maneira. No diálogo entre amigos, quem ouve também tem categorias próprias de entendimento, que incluem seus próprios pré-juízos, noções, valores etc. Tenta ver na expressividade do amigo uma forma de atuar através de suas próprias categorias de entendimento. Se um amigo está reclamando da relação de trabalho com sua empresa, e o que ouve tem uma noção de que sempre os empresários e empresas exploram seus empregados, vai acabar dando conselhos nesta linha e tentará influenciar seu amigo através de suas próprias expectativas, tendências e pré-juízos. Ele não

Ciência e pensamento mágico*

  Um pensamento mágico do homem de nosso tempo: a crença de que quando deixa de chamar certas coisas de "deuses", deixa de crer em deuses. O homem do século XXI crê em deuses de modo tão intenso que nem percebe que crê: entende o objeto de sua crença como a própria realidade. Afirma professar um “ateísmo”, fruto de um “realismo”. Porém, não compreende que nem é ateu, nem realista: é um crente no sentido mais radical da palavra, e toma como “real” o que é uma construção social. De fato, o ateísmo não propõe um embate contra a crença nos deuses, mas contra uma palavra. Suprima-se a palavra “deus” – e o ateu adere prontamente a qualquer credo. Renomeia-se o deus, mudam-se os rituais de culto, e o pensamento inteiro fantasia haver superado o mito em benefício da razão. * * * O homem contemporâneo acredita substituir o pensamento mítico pelo pensamento racional. Ele não percebe que, em primeiro lugar, simplesmente renomeia antigos mitos; em segundo lugar, cria um novo panteã

Uma arte de compor raridades******

  Um novo lugar surge da interseção entre duas ou mais estruturas de pensamento, vínculo de convivência animado pela diversidade dos encontros. Essa nuance discursiva passa longe de um molde universal, incabível ao método da Filosofia Clínica.    A partir de uma sensação estranha, protagonista em uma história inédita, algo mais pode acontecer. Num esboço existencial compartilhado se apresenta alguém em vias de tornar-se. Ao olhar fenomenológico do filósofo, acolhendo e descrevendo essas narrativas do partilhante, se faz possível acessar esses desdobramentos de natureza singular. Eventos onde aparece e se elabora aquilo até então sem espaço para se contar. Na perspectiva de um e outro, esse instante aprendiz qualifica o olhar sobre o mundo que o constitui e por ele é constituído. Ao acrescentar linguagens, desvendar rotas, emancipar territórios, revela uma arqueologia expressiva sob os escombros do antigo vocabulário. O conceito de singularidade, ao ser inclusão, se faz paradoxo às lógi

Revista da Casa da Filosofia Clínica Outono 2024 - Ed. 08 - Dicionário de Filosofia Clínica

  Revista da Casa da Filosofia Clínica Outono 2024 CLIQUE AQUI PARA LER Esta é uma edição especial, nela apresentamos o Dicionário de Filosofia Clínica, uma vez que como novo paradigma, os termos em Filosofia Clínica tem um sentido próprio. No entanto, aqui é importante lembrar, um desafio dessa natureza não é um trabalho acabado, mas sim em constante construção. Essa publicação busca ser uma companhia aos estudantes, pesquisadores, profissionais, para esclarecer o significado dos termos agendados, os quais se inserem no contexto da especialização.   Leia. Releia. Comente. Compartilhe. Faça o conhecimento circular. CLIQUE PARA LER

Deslocamentos de autogenia e novo paradigma***

  “Saber melhor sobre a historicidade de cada pessoa, fazia tudo dançar mais feliz, leve.” Um belo dia ela saiu de casa determinada a ser algo mais, além de mãe. Seu amor insistia, agendava, incentivava que ela tinha um talento para a arte. Buscou a filosofia clínica para ensaiar-se. Na época os atendimentos aconteciam de modo presencial, na Cidade Baixa, Porto Alegre. Em clínica ela entendeu que a paixão dominante podia sair para dançar. Convidou a busca, a semiose e a expressividade e começaram a experimentar. Uma dança aqui, outra ali, bem aos poucos porque o papel existencial de mãe lhe tomava por inteiro, em uma dedicação admirável, prisioneira, estruturante. Respeitamos seu tempo, “sempre tem o momento certo”. Sim, ela dizia acreditar que “sempre tem o momento certo para as coisas”. Uma axiologia a assimilar o tempo, tomar fôlego, recuperar as forças perdidas nos agendamentos infortúnios das relações familiares. Quando pequena lhe tiraram a tela e a tinta das mãos, foi forman

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